O que começou como um confronto localizado evoluiu para uma espiral de devastação contínua — um processo de degradação moral que desafia os próprios fundamentos do direito humanitário. A cada dia, acumulam-se as vítimas, expandem-se as ruínas e cristaliza-se o silêncio diplomático — como se a dor palestiniana tivesse tornado rotina.
O prolongamento da ofensiva, assente em bombardeamentos incessantes, deslocações forçadas e no colapso das infraestruturas civis, revela o esgotamento da diplomacia global e a impotência das grandes potências para conter a lógica da violência. Gaza transformou-se no espelho mais implacável da apatia coletiva: uma sociedade sitiada onde sobreviver é o último exercício de dignidade.
Segundo as Nações Unidas, mais de dois terços das habitações foram destruídas ou gravemente danificadas, deixando cerca de 1,7 milhão de pessoas sem abrigo. Os hospitais operam à beira do colapso, dependentes de geradores e sem medicamentos essenciais; os abrigos, outrora refúgios, converteram-se em novos alvos de ataques.
A água potável escasseia, a eletricidade rareia e a fome alastra em silêncio, atingindo sobretudo crianças e idosos. De acordo com dados recentes da OMS e da Unicef, cerca de 1,2 milhão de menores necessitam de apoio psicológico urgente, e mais de 23 mil sofreram ferimentos físicos graves — muitos com amputações ou sequelas permanentes.
Estudos indicam que mais de 90% das crianças exibem sintomas de trauma, desde insónias e pesadelos a crises de ansiedade e mutismo seletivo. Em Gaza, a infância converteu-se na primeira vítima do colapso humanitário, e o trauma colectivo é hoje a herança mais devastadora da guerra.
A destruição das escolas — com mais de 80% das instalações educativas danificadas — e o encerramento das universidades mergulharam uma geração inteira num vazio sem futuro, num limbo entre a sobrevivência e a desesperança.
Enquanto a tragédia humana se aprofunda, a comunidade internacional oscila entre a inação e a dissimulação. O Conselho de Segurança das Nações Unidas permanece bloqueado por vetos, reduzido à emissão de comunicados sem efeito.
Os Estados Unidos sustentam o discurso do “direito à autodefesa” de Israel, ignorando a desproporção abissal entre as partes e a destruição sistemática de infraestruturas civis. A União Europeia, dividida entre a culpa histórica e o cálculo político, hesita em adotar uma posição firme, permitindo que a prudência diplomática se confunda com complacência.
O resultado é uma neutralidade que, sob o pretexto da moderação, normaliza o horror. No mundo árabe, o imobilismo também domina: o Egito gere Rafah como quem controla o fluxo de uma ferida aberta; a Jordânia e o Líbano enfrentam as suas próprias crises, e as monarquias do Golfo preferem o silêncio conveniente à solidariedade efetiva. A causa palestiniana, outrora símbolo de unidade, tornou-se um incómodo político.
A guerra desenrola-se igualmente no domínio simbólico. O Ocidente alimenta-se de uma linguagem de eufemismos — “danos colaterais”, “operações cirúrgicas”, “zonas seguras” — que dilui a brutalidade dos factos. As redes sociais, saturadas de imagens de destruição, banalizam o horror e anestesiam a empatia: quanto mais se vê menos se sente.
A repetição da tragédia converte a dor em ruído, e o sofrimento deixa de comover. A paralisia moral global é hoje tão letal quanto as bombas. Gaza não é apenas um palco de guerra, mas o ponto de fratura de uma civilização que se habituou a assistir à morte sem reagir.
A persistência do conflito expõe o colapso das instituições multilaterais e o uso seletivo do direito internacional — implacável com os fracos, condescendente com os poderosos. Quando a justiça se transforma numa moeda política, o seu valor evapora-se.
Passados dois anos, Gaza já não é apenas um território devastado: é o retrato mais nítido da decadência ética do nosso tempo. Cada ruína, cada criança órfã, cada hospital em cinzas denuncia a contradição de um mundo que proclama os direitos humanos enquanto observa a sua violação diária.
O que se destrói não é apenas uma cidade, mas a própria ideia de humanidade. Se o século XXI começou com a promessa de uma ordem baseada em valores universais, Gaza demonstra o inverso: a erosão silenciosa da compaixão e a indiferença erigida em norma. Talvez essa seja a ferida mais profunda — a certeza de que, diante do abismo, o mundo preferiu desviar o olhar.

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