quarta-feira, 1 de outubro de 2025

Repensar o valor em tempos de colapso climático

Belém se prepara para receber a COP30, em 2025. Enquanto chefes de Estado, diplomatas e executivos afinam discursos sobre “transição energética” e “neutralidade de carbono”, a Amazônia arde em chamas e rios inteiros desaparecem. No mesmo ano em que a conferência se anuncia como “histórica”, comunidades do Baixo Amazonas sofrem com a seca mais severa em décadas, enquanto, no Sul do Brasil, milhares de famílias perdem casas e plantações em enchentes inéditas. Do outro lado do Atlântico, ondas de calor fecham escolas na França e ameaçam idosos em bairros populares de Paris. Os exemplos se multiplicam: incêndios no Canadá, furacões mais intensos no Caribe, desertificação no Sahel. A linguagem técnica fala em “eventos extremos”, mas a realidade é outra: trata-se de uma crise das condições de vida. Lugares antes considerados seguros se tornaram instáveis. Regiões agrícolas produtivas convivem com perdas constantes. Cidades se adaptam à base de muros, bombas hidráulicas e ar-condicionado, criando novos abismos sociais entre os que podem se proteger e os que ficam expostos.

O que está em jogo não é apenas a estabilidade climática, mas a própria possibilidade de manter meios favoráveis à vida: plantar, respirar, beber água, caminhar sob o sol sem adoecer. Não basta contabilizar mortes, perdas econômicas ou gigatoneladas de CO₂. O colapso atual nos força a perguntar algo mais profundo: o que consideramos viver bem? Durante séculos, confundimos progresso com mais máquinas, mais velocidade, mais consumo. Hoje, esse modelo mostra seus limites: cada avanço técnico parece abrir novas frentes de devastação. A catástrofe não é apenas natural nem exclusivamente social. Ela nos obriga a olhar para a relação entre a vida e os meios que a sustentam. A crise climática é também uma crise de valores: as categorias que herdamos para definir o que é normal, saudável ou desejável perderam aderência. É a partir dessa fratura que precisamos começar a pensar.

Se há algo que a crise climática escancara é a fragilidade da separação entre vida e ambiente. Estamos acostumados a falar no “meio” como se fosse um cenário externo, um pano de fundo neutro no qual as sociedades humanas se desenrolam. Mas a experiência do colapso mostra que não há distância: o meio é inseparável da vida que nele se desenha. Essa intuição foi formulada de maneira clara por Georges Canguilhem, filósofo da vida e da medicina. Para ele, a vida não é passiva nem se reduz a adaptar-se. O próprio ato de viver consiste em instaurar normas, em diferenciar o que é favorável e o que é hostil. Normal e patológico não são categorias fixas: são efeitos dessa capacidade vital de criar critérios em relação ao meio. Quando um organismo se encontra em um território desconhecido, ou quando o clima se altera, ele precisa redefinir suas normas. É nesse movimento que se reconhece a potência criativa da vida. O problema do nosso tempo é que os meios se transformam em velocidade vertiginosa, impulsionados por processos técnicos e econômicos globais. A vida, com sua plasticidade, resiste, mas a cada dia vê comprimida a margem de invenção. Cultivos tradicionais deixam de prosperar, cidades inteiras se tornam insalubres, doenças antes controladas reaparecem em novas regiões. O que antes era considerado normal – o ritmo das chuvas, a fertilidade dos solos, a estabilidade das estações – perde consistência. O que chamamos de crise ambiental é, portanto, também uma crise normativa. Não sabemos mais quais critérios adotar para distinguir o aceitável do intolerável. Fala-se em segurança alimentar, mas os próprios alimentos viajam milhares de quilômetros e dependem de insumos tóxicos. Fala-se em energia limpa, mas cada nova barragem ou parque eólico reconfigura territórios, expulsa comunidades e cria novas desigualdades. O que falta não é apenas tecnologia, mas um horizonte de sentido capaz de restituir à vida a possibilidade de criar seus próprios meios. É nesse ponto que a questão da vida e do meio, tão marginalizada pelo discurso técnico, precisa voltar ao centro. Sem recolocar essa relação como chave de leitura, o debate climático se limita a planilhas e metas, incapaz de enfrentar o essencial: como sustentar a continuidade da vida em sua pluralidade de mundos.


Durante séculos, a ideia de progresso funcionou como horizonte comum das sociedades modernas. A técnica, o crescimento econômico e a expansão das cidades eram vistos como sinais de avanço universal. O meio transformado pela engenharia, pela ciência e pela indústria aparecia como garantia de um futuro melhor. Era possível acreditar que cada máquina inventada, cada infraestrutura erguida, cada hectare conquistado representava um passo em direção ao bem-estar coletivo. Hoje, essa promessa perdeu credibilidade. A mesma técnica que prometia libertação tornou-se fonte de novos riscos. Barragens que deveriam garantir energia e desenvolvimento provocam deslocamentos em massa e desastres ambientais. Fertilizantes que multiplicaram a produção agrícola contaminam solos e águas. Sistemas de transporte global, que conectaram mercados e culturas, espalham vírus em velocidade inédita e intensificam a dependência de combustíveis fósseis. O progresso mostra sua face contraditória: a aceleração da inovação técnica gera um encadeamento de catástrofes, muitas vezes mais rápidas do que nossa capacidade de resposta. O problema não está apenas em más aplicações da tecnologia ou em falhas de planejamento. O que se revela é o próprio núcleo da promessa: identificar progresso com poder de transformação do meio. Essa equivalência entre vitalidade e técnica sustentou a crença de que mais energia, mais velocidade, mais circulação significariam automaticamente melhores condições de vida. A crise climática expõe o erro dessa tradução. Quanto mais aceleramos, mais reduzimos a margem de adaptação da vida e mais estreitamos as possibilidades de convivência com outros seres. O que chamamos hoje de catástrofe não é o colapso de uma ordem natural estável, mas a falência de um regime histórico de valores. O progresso já não é sinônimo de saúde ou de futuro, mas o nome de uma máquina que consome meios de vida em escala planetária. Colocar em questão essa promessa não significa negar a importância das descobertas científicas ou dos avanços técnicos, mas recusar a ideia de que eles, por si só, garantem continuidade da vida. A questão que se impõe é outra: quais técnicas, quais usos da ciência, quais formas de transformar o meio ainda podem ser consideradas favoráveis à vida?

Diante do fracasso da promessa de progresso, emergem novas maneiras de compreender a Terra. Bruno Latour e Isabelle Stengers chamam a atenção para um fato simples, mas perturbador: o planeta não é um pano de fundo passivo sobre o qual se desenrola a história humana. A Terra vive, cria, age, reage. O que chamamos de Gaia não é uma divindade nem uma metáfora poética, mas o nome de uma força que devolve à humanidade os efeitos acumulados de sua ação. Essa virada implica abandonar a visão de um mundo único e estável, governado por leis naturais que poderíamos dominar ou corrigir à vontade. A Terra não cabe mais nesse modelo. Secas prolongadas, tempestades imprevisíveis e degelo acelerado não são apenas acidentes a serem administrados: são sinais de que vivemos num sistema vivo e instável, que se transforma em resposta às pressões humanas. Para povos indígenas, essa constatação não é novidade. Muito antes de se falar em Antropoceno, eles já diziam que a invasão colonial significava o fim de seus mundos. Cada floresta derrubada, cada rio desviado, cada território tomado não representava apenas uma perda material, mas a destruição de relações vitais com espíritos, animais e plantas. O que hoje chamamos de catástrofe global foi, para eles, um processo contínuo de ruína desde o início da colonização. Falar em Gaia, portanto, não é apenas atualizar a ciência climática, mas também reconhecer a multiplicidade de mundos que compõem a Terra. A ideia de um colapso único, homogêneo e universal esconde que existem diferentes modos de experimentar e nomear a crise. Para uns, é a ameaça de inundações que exigem investimentos em diques e seguros; para outros, é a perda irreversível de territórios e modos de vida. Essa perspectiva cosmopolítica desloca o debate. Não se trata mais de encontrar uma solução técnica global, mas de admitir que diferentes coletivos – humanos e não humanos – devem ser considerados na definição do que conta como viver. A crise climática deixa de ser apenas problema de engenheiros e diplomatas: torna-se disputa sobre como compor mundos comuns entre formas de vida diversas.

Se a cosmopolítica nos obriga a reconhecer a multiplicidade de mundos, o ecofeminismo mostra como a exploração da natureza e a opressão das mulheres caminham lado a lado. Ao longo da modernidade, o trabalho invisível do cuidado foi relegado a um segundo plano, assim como os ciclos vitais da terra foram tratados como recursos a serem extraídos sem limites. A mesma lógica que transformou florestas em monoculturas reduziu a experiência feminina ao silêncio da reprodução. Vandana Shiva fala em “monocultura da mente”: a ideia de que há apenas uma forma válida de conhecimento, a científica, que legitima a homogeneização das práticas agrícolas, a dependência de agrotóxicos e sementes patenteadas. Essa monocultura não destrói apenas a biodiversidade, mas também a pluralidade de saberes. Donna Haraway, por sua vez, propõe pensar o parentesco além da família biológica, reconhecendo que viver é sempre viver com outros – animais, plantas, microrganismos. Val Plumwood denuncia o dualismo que separa cultura e natureza, racionalidade e corpo, masculino e feminino, e mostra como esse esquema legitima a dominação. O ecofeminismo não se limita a denunciar: ele propõe outro critério de valor. O cuidado, tão desvalorizado nas sociedades capitalistas, aparece como central para pensar a continuidade da vida. Isso não significa uma romantização do papel tradicional das mulheres, mas a valorização do trabalho vital de sustentar meios de existência. Cuidar de uma criança, de um idoso, de uma horta ou de uma nascente não é atividade secundária: é o coração de qualquer projeto de futuro. O que emerge dessa perspectiva é uma ética da reciprocidade. A vida não se sustenta pela acumulação infinita, mas pela atenção aos limites, pela manutenção dos vínculos, pela capacidade de regenerar. Em vez da corrida pelo crescimento, o ecofeminismo sugere outro horizonte: viver bem é viver em relações que sustentem a pluralidade dos seres. Essa virada desloca a economia da exploração para uma política do cuidado – uma lição indispensável diante da catástrofe climática.

Outra chave de leitura da crise climática vem da tradição marxista. Se o termo Antropoceno sugere que “a humanidade” como um todo seria responsável pela devastação, críticos lembram que nem todos têm a mesma participação ou sofrem as mesmas consequências. Por isso, muitos preferem falar em Capitaloceno: não é o ser humano genérico que ameaça a Terra, mas um sistema econômico que transforma tudo em mercadoria e trata a vida como matéria-prima para acumulação. Essa leitura tem longa história. Rosa Luxemburgo já apontava, no início do século XX, que o capitalismo precisava expandir continuamente para novos territórios, destruindo modos de vida locais. Silvia Federici mostrou como a transição ao capitalismo foi também captura dos corpos e do trabalho reprodutivo, subordinando mulheres e camponeses a um regime de exploração contínua. Mais recentemente, Kohei Saito retomou Marx para defender um comunismo ecológico, baseado no decrescimento e no uso racional dos recursos comuns.

O Capitaloceno não é apenas um nome novo: é uma forma de evidenciar as desigualdades que a palavra Antropoceno tende a apagar. O consumo de energia, a emissão de gases, o desmatamento e a mineração não são distribuídos igualmente. Grandes corporações, potências industriais e cadeias globais concentram a responsabilidade, enquanto comunidades pobres e povos indígenas pagam o preço mais alto. A crise, vista assim, não é apenas ecológica, mas também social e política. A crítica marxista também ilumina a maneira como a economia verde reproduz velhas lógicas sob nova roupagem. Créditos de carbono, compensações ambientais e mercados de biodiversidade são apresentados como soluções, mas frequentemente resultam em novas formas de cercamento: terras comunitárias transformadas em reservas de carbono, populações expulsas em nome da preservação. O mesmo sistema que produziu a crise oferece suas próprias “soluções”, mantendo intactas as bases da exploração.

Falar em Capitaloceno, portanto, não é apenas um exercício teórico, mas um chamado à ação. Se a crise climática é também crise do capital, enfrentar o desastre exige transformar não só a relação com a natureza, mas o próprio modelo econômico que mercantiliza a vida. A pergunta central deixa de ser apenas “como reduzir emissões?” e passa a ser “como reorganizar a sociedade para que a vida, e não o lucro, seja o valor fundamental?”.

À medida que o colapso se torna inegável, cresce também o uso político da palavra “ecologia”. Governos, empresas e organismos internacionais repetem o termo como senha de legitimidade, mas o esvaziam de sentido crítico. A ecologia, que nasceu como ciência das relações entre seres vivos e seus meios, foi convertida em linguagem de gestão. É nesse registro que surgem expressões como risco, resiliência e sustentabilidade, hoje presentes em relatórios de bancos, em planos de urbanismo e até em campanhas publicitárias. O risco é transformado em cálculo: quem pode pagar seguros, instalar barreiras ou migrar para áreas seguras, reduz sua exposição. Quem não pode, assume os prejuízos e a morte como custo invisível. A resiliência, apresentada como virtude, esconde um deslocamento perverso: já não se trata de evitar a destruição, mas de exigir que populações inteiras aprendam a conviver com ela. A sustentabilidade, tão celebrada, tornou-se selo para o “crescimento verde”, que mantém a lógica de exploração, apenas adaptada a novas métricas de carbono e biodiversidade. Esse vocabulário é o núcleo do adaptacionismo: a ideia de que não há alternativa senão ajustar-se a um mundo cada vez mais hostil. Trata-se de uma racionalidade que naturaliza a catástrofe e coloca sobre os mais vulneráveis o fardo de suportá-la. Povos indígenas, ribeirinhos, agricultores familiares, moradores de periferias urbanas são convocados a “resistir” e “se adaptar”, enquanto o modelo que produz a devastação segue intocado. A ecologia oficial funciona como gramática de administração da crise. Em vez de questionar os fundamentos de nossa relação com a Terra, ela transforma a catástrofe em oportunidade de negócio e em espetáculo de diplomacia. Relatórios técnicos, metas e indicadores multiplicam-se, mas o essencial permanece fora de pauta: quais meios de vida queremos sustentar, e a que custo. Ao invés de abrir espaço para a pluralidade dos mundos, essa ecologia captura a linguagem da vida para legitimar a continuidade de um sistema que a destrói. É o que veremos de forma exemplar na COP30, em Belém, quando a Amazônia será transformada em palco para uma encenação global de compromissos verdes.

A escolha de Belém do Pará como sede da COP30, em 2025, foi celebrada como triunfo diplomático do Brasil. A narrativa oficial fala em dar “voz à Amazônia”, colocar “a floresta no centro do debate” e mostrar ao mundo a liderança brasileira na agenda climática. Mas basta observar a realidade amazônica para perceber as contradições desse espetáculo. Enquanto hotéis são reformados e avenidas asfaltadas para receber delegações estrangeiras, comunidades ribeirinhas vivem sem saneamento, com acesso precário a energia elétrica e sob ameaça constante de poluição por mercúrio do garimpo. Os discursos sobre “neutralidade de carbono” ecoam nos salões climatizados, enquanto desmatamento, hidrelétricas e agronegócio seguem avançando sobre territórios indígenas e áreas de floresta. A promessa de “dar voz” aos povos da Amazônia corre o risco de se limitar a participações simbólicas em painéis paralelos, enquanto as decisões centrais são tomadas entre governos e corporações. O programa da conferência tende a repetir a gramática já conhecida: mercados de carbono, compensações ambientais, compromissos de redução gradual de emissões. O que se negocia, na prática, é a continuidade do modelo extrativo, agora com nova roupagem. A floresta vira “estoque de carbono” e suas populações, guardiãs involuntárias de créditos vendidos em bolsas internacionais. Ao invés de interromper a lógica de destruição, a COP30 pode reforçá-la, legitimando o que há de mais perverso no adaptacionismo: a administração do desastre como se fosse inevitável. O risco de Belém é que a COP30 se converta em espetáculo de imagens e promessas, uma vitrine global onde o verde é cor de marketing. A cidade se tornará palco de uma encenação que projeta para o mundo uma Amazônia harmônica, ao mesmo tempo em que sua população continua submetida a um cotidiano de violência ambiental, social e política. A conferência pode até criar consensos diplomáticos, mas dificilmente tocará na questão fundamental: como transformar a relação entre vida e meio para que múltiplos mundos possam florescer.

A crise climática só pode ser compreendida plenamente se deslocarmos o foco: não basta falar em gigatoneladas de carbono ou em metas de redução. O que está em jogo é a própria relação entre vida e meio. Essa relação, longe de ser natural e imutável, é histórica: sociedades diferentes instituíram maneiras distintas de habitar, cultivar, criar vínculos e organizar seus mundos. Foi a modernidade ocidental que, ao identificar progresso com domínio técnico, transformou o meio em objeto de exploração e a vida em recurso a ser administrado. Georges Canguilhem mostrou que viver é sempre uma atividade normativa, isto é, de criação de critérios do que é favorável ou desfavorável em cada situação. Mas quando a velocidade das transformações ultrapassa a capacidade vital de instituir novas normas, instala-se a crise. É o que vemos agora: rios que secam em semanas, temperaturas que saltam de extremos, cidades que se tornam inóspitas em poucas décadas. O meio deixa de ser campo de invenção e passa a impor hostilidade permanente. Tratar a crise apenas como problema técnico é repetir a armadilha do progresso. O que se impõe é um programa histórico-epistemológico: examinar como chegamos a este ponto, quais valores sustentaram a equivalência entre vitalidade e produtividade, e de que modo podemos reconstruir outra gramática de convivência. Não se trata de nostalgia por um passado idílico, mas de reconhecer que a vida sempre foi plural e que o meio nunca foi único. Existem muitos mundos, muitas formas de normatividade, muitas maneiras de viver bem. Recolocar a vida e o meio no centro do debate é também abrir espaço para experiências que foram marginalizadas: saberes indígenas que compreendem a floresta como parente, práticas camponesas de cultivo que respeitam os ciclos da terra, formas de cuidado que não se deixam medir por índices de produtividade. Esses não são resquícios arcaicos, mas reservas de futuro. Num planeta em colapso, eles mostram que é possível imaginar meios favoráveis sem repetir a lógica do capital. O desafio, portanto, não é apenas sobreviver ao Antropoceno, mas reinventar os critérios que definem o que conta como viver.

Chegamos a um ponto em que os diagnósticos técnicos já não bastam. Sabemos quais são as curvas de aquecimento, as metas de emissão, os limites de desmatamento. O que falta não é informação, mas coragem para deslocar os critérios que organizam nossas escolhas. A crise climática não é apenas um problema físico, é uma crise axiológica: já não sabemos quais vidas são sustentáveis, quais meios queremos preservar, quais futuros desejamos construir. Falar em política da vida significa recolocar essa pergunta no centro. Não se trata de salvar uma abstração chamada “natureza”, nem de administrar estoques de carbono em bolsas de valores. O que está em jogo é a possibilidade de continuar criando mundos em comum, de sustentar vínculos entre espécies, de permitir que a vida siga inventando normas em territórios ainda férteis. Isso exige reconhecer as desigualdades que estruturam a catástrofe: não é o mesmo enfrentar o colapso nos bairros ricos de São Paulo e nas aldeias do Xingu, em Paris ou em Porto Príncipe. Justiça climática significa pluralizar os meios de vida, reconhecer as diferenças e proteger os mais vulneráveis. Essa política da vida não virá das cúpulas diplomáticas, mas das práticas que já reinventam cotidianos: comunidades que recuperam rios poluídos, coletivos urbanos que cultivam hortas em terrenos baldios, povos indígenas que defendem a floresta não como recurso, mas como condição de existência. São experiências frágeis diante da máquina global de exploração, mas é nelas que se encontra a semente de outro futuro.

O Antropoceno nos obriga a abandonar a gramática do progresso e a pensar em termos de continuidade vital. O que está em jogo não é simplesmente reduzir danos, mas transformar os valores que regem nossa relação com o Planeta. Diante de um planeta que responde, a alternativa é clara: ou seguimos normalizando a catástrofe em nome da resiliência, ou inventamos uma política fundada na vida e no meio que a torna possível. Não há neutralidade possível nesse horizonte. O futuro dependerá da coragem de escolher quais mundos queremos habitar e quais valores estamos dispostos a sustentar.
Caio A. T. Souto

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