Não se trata da inovação tecnológica ou da comodidade de acesso. O seu crescimento resulta de uma opção legislativa.
Na televisão, na rádio e na imprensa escrita, o proprietário é solidariamente responsável com o autor da peça ou do texto pelos prejuízos causados. Sendo crime, o diretor pode também ser acusado, a par de quem criou o texto ou a imagem, quando não impediu a sua publicação. Isso incentiva a um cuidado especial. Os média tradicionais têm linhas editoriais e diretores de informação que cuidam de evitar a divulgação de conteúdos que incitem ao ódio ou sejam falsos ou capazes de induzir em erro (a tão famosa “desinformação”). Como qualquer outra empresa, também as televisões, as rádios e os jornais visam o lucro, mas o risco financeiro e de processos-crime impedem práticas predadoras.
Com o intuito de promover o comércio eletrónico, optou-se por isentar as plataformas da responsabilidade pelos prejuízos causados pelos conteúdos partilhados. Um offshore, com zero de responsabilidade. O legislador não ponderou os resultados deste incentivo. Livres de qualquer responsabilidade e, tal como qualquer média tradicional, dependentes da publicidade para rentabilizar o investimento, o objetivo é ganhar audiência. Para tal há que garantir que cada um vê o máximo possível daquilo que lhe interessa. E se o conteúdo for chocante, mais interessados nos tornamos, mais nos mantemos online. Mais tempo somos “audiência”. Há por isso que desenvolver algoritmos capazes de perceber do que gostamos, o que nos vicia, para continuar a alimentar o nosso insaciável apetite. Um feed, que sempre que pegamos no telemóvel nos relembra o nosso interesse num tema, com novos conteúdos, imparável, sempre com uma nova sugestão. E assim, juntamente com o conteúdo, a mensagem publicitária que garante o lucro. Há que assegurar que se não estamos online, iremos rapidamente estar e, então, inventam-se as notificações, que nos interrompem com um toque, um tremor, uma imagem. O feitiço completa-se com o botão do like. O nosso desejo de aprovação satisfeito com um polegar que sinaliza a receção ao conteúdo que partilhámos ou criámos.
“Mostrem-me o incentivo e eu mostro-vos o resultado.” O resultado é a proliferação dos conteúdos mais extremos e chocantes, que nos criam visões distorcidas da realidade. A “realidade” no nosso telemóvel é aquilo que tememos e nos choca.
John Stuart Mill afirmava que o maior risco para a democracia era a ameaça à liberdade de pensamento e expressão. As big tech utilizam Mill, indevidamente, para se oporem a qualquer responsabilização pelos conteúdos disponíveis nas plataformas. Afinal, afirmam, se removerem conteúdos estão a violar a liberdade de expressão. O argumento é falso. Os conteúdos mais chocantes geram mais visualizações e partilhas e, como tal, mais “audiência”. E “audiência” gera vendas de publicidade. Mill acreditava que a exposição a diferentes posições permitiria rebater as opiniões falsas ou irracionais. Mas o algoritmo não alimenta o feed com prós e contras de forma equilibrada, ao invés, reforça apenas uma visão. A maior ameaça à democracia é, no século XXI, o algoritmo.
O Regulamento dos Serviços Digitais não alterou, significativamente, o regime legal em matéria de responsabilização. Mantém-se a inexistência de um dever de vigilância, e obriga-se, apenas, as plataformas a retirarem conteúdos ilegais na sequência de uma denúncia ou porque “sabem” que é ilegal. A legislação continua a ignorar que as plataformas não são passivas. Promovem a disseminação, priorizam conteúdos.
O legislador europeu não precisa de criar uma legislação específica, basta aplicar o regime da responsabilidade dos média tradicionais, sempre que as plataformas optem por promover a disseminação de um determinado conteúdo. Alterar o incentivo contribuiria para uma internet mais segura e verdadeira – onde o falso, ilegal e danoso, ao não ser prioritizado pelo algoritimo, daria lugar à informação verdadeira, que todos os dias é partilhada.

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