Da primeira vez que levei a minha filha mais velha à praia, tive a ilusão de poder descrever-lhe o mundo como se ele não tivesse existido antes dela. Esta é a areia e esta é uma concha. E ali está o mar, que cabe dentro deste búzio. O azul que te cega é salgado. O chão que pisas escorrega-te pelos dedos. E os gritos que te embalam são das gaivotas, que sempre aqui estiveram, mas parecem hoje novas como nunca. Tudo parece novo e diferente, porque estamos a vê-lo pela primeira vez, como se nunca antes ninguém o tivesse visto.
Mas a invenção do mundo faz-se por camadas. “As pessoas que vêm de África cozinham melhor do que as outras?”, perguntou-me certo dia o meu filho mais novo enquanto deambulávamos pela cidade. Franzi o rosto. Não percebi a pergunta. “É porque são sempre as pessoas mais escuras que trabalham nas cozinhas.” Fiquei com a pergunta a remoer na cabeça. E a única coisa que consegui dizer é que a cor da pele não nos diz em que país alguém nasceu e que África nem sequer é um país, mas um continente grande, cheio de gentes diferentes e países com as suas histórias de reis, exércitos e cidades.
Quase um ano depois, a mesma inquietação surge com outra pergunta. “Porque é que as pessoas morenas trabalham mais nas limpezas?” E a resposta que andei a cozinhar já me sai mais completa, mas não é fácil de contar. A desigualdade é uma coisa que só parece óbvia quando caímos no conto de fadas que nos diz que ela é tão natural e antiga como o céu que está sobre as nossas cabeças. Mas não é. A desigualdade é difícil de contar porque ela é muito antiga, sim, tem raízes com milhares de anos, mas não nasceu com o início do mundo. E arrancá-la da terra pode mesmo ser a única forma de evitar o fim do mundo.
Ensaiei, como pude, uma explicação que os meus filhos pudessem entender. Sem dourar o que é sombra. Mas voltando à ideia de que a única vez que nascemos iguais já foi há milhares de anos. Depois disso, cada um de nós foi nascendo num mundo antigo, herdando tudo o que já cá estava. E sabendo, enquanto o dizia, que dizê-lo não pode nem deve impedir-nos de querer inventar o mundo. O barro com que trabalhamos é duro, mas não deve faltar-nos nunca a coragem, a imaginação e até a alegria para o moldarmos.
Comecei, então, a contar. Houve um tempo em que os mais fortes decidiram explorar os mais fracos. Houve um tempo em que se decidiu que os tons da pele podiam ser uma escala de ser humano. Quanto mais escuros, menos humanos, para que pudéssemos explorá-los como se arrancam pedras das minas ou se colhem frutos das árvores. Para que parecesse natural o que nunca o foi. Marcaram-se assim, na pele, os fortes que tudo podem e os fracos que nada têm.
Quem chegou ao mundo muitos séculos depois da invenção da raça já nasce marcado por ela. Não só pela cor que lhe cobre a pele, mas pela pobreza que recebeu de herança. Não há nada que dite tanto a sorte de alguém como o berço em que nasceu. Contam-nos histórias de heróis, que cabem nos dedos das mãos, para deixar na sombra os milhões que nunca deixarão de ser pobres pelo simples facto de que foi assim que nasceram.
O esforço não conta nada? Conta alguma coisa. Mas é muito diferente correr com um menir às costas ou de braços vazios. Começa-se sem os alimentos que nos tornam mais saudáveis e fortes, sem as brincadeiras que nos estimulam, sem o tempo para que nos cuidem e ganhemos o sentido de sermos alguém que merece. Depois vem a importância de sobreviver, de nos fazermos à vida para ter o que comer. Não há o luxo dos livros, das viagens e dos museus. E a vida transforma-se numa corrida de obstáculos, em que alguns nascem com asas e outros com pernas curtas.
Explico muitas vezes aos meus filhos que os pobres são, quase sempre, os que mais trabalham. Só que vivem na mentira de que o trabalho que fazem não vale nada e são ensinados a odiar quem tem menos. O desempregado que passa o dia no café irrita-os mais do que o bem-nascido que vive das rendas das casas herdadas. É que esse é aquele que eles queriam ser. No fundo, sabem que vale mais esse privilégio de berço do que as migalhas dos subsídios. Mas não o dizem em voz alta, com medo que pareça inveja.
Os malfadados subsídios foram muitas vezes a forma de repor alguma justiça, entre os que já nascem com prédios e contas no banco e os que só nascem com fome. Foram também uma forma de colar a cuspo uma certa paz, adormecendo estômagos famintos com algumas côdeas, para lhes entorpecer a raiva. Mas enganar a fome não é o mesmo que matá-la. E é aí que têm razão aqueles que se inflamam contra os subsídios, que tentam mascarar a desigualdade em vez de a abalar verdadeiramente.
A fome só se mata com a paz, o pão, habitação, saúde, educação. Sim, lá vem outra vez essa velha cantiga. Hei de cantá-la até enrouquecer. Porque é por isso que anseiam os que lutam pela liberdade, mas também muitos dos que agora a veem como sua inimiga. É nas falhas desse muro que nascem as ervas daninhas, bem regadas por aqueles a quem interessa ver ruir tudo. Para que tudo volte a ser aquilo que se inventou há milhares de anos. Teremos de as arrancar com os dedos e de plantar no seu lugar as sementes do amor e da igualdade.

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