Era muito fácil, sem o saber, dizer que a fotografia tinha sido tirada num qualquer país muçulmano. Mas foi assim que a democracia encontrou as mulheres em Portugal. Tapadas, caladas, sem direitos, submissas aos maridos ou aos pais. Diminuídas nas escolhas, tolhidas nas vontades, oprimidas nos desejos. Até ao 25 de Abril, as portuguesas não podiam viajar para fora do País sem a autorização do marido ou do pai (se fossem solteiras) e era mesmo possível terem de deixar de trabalhar, caso o marido ou o pai entendessem que elas não deviam fazê-lo. Bastava-lhes ir ao local de trabalho dizer que não concordavam com a contratação.
Não era uma singularidade portuguesa. Em 1951, Encarna tinha acabado de se casar, trabalhava e estava a montar casa. Um dia, dirigiu-se a um armazém para comprar um sofá. Escolheu o que lhe parecia melhor e que podia pagar e dirigiu-se ao balcão. Do outro lado, perguntaram-lhe se tinha autorização do marido para o comprar. “Como assim? Tenho aqui o dinheiro. Eu trabalho”, respondeu, incrédula. “É a lei”, ripostaram do outro lado. E era. A história está contada num episódio do podcast Un Tema Al Día”do jornal espanhol El Diário, que serve para lembrar que até 1975 as espanholas não podiam fazer grandes compras, abrir contas no banco ou trabalhar sem o que por lá se chamava “licencia marital”.
Esta semana, tropecei num vídeo, gravado talvez no final dos anos 70, inícios dos 80, em Itália, onde são entrevistados marido e mulher. O homem diz que a mulher deve obedecer-lhe e, apesar da muita insistência do entrevistador – que lhe lembra que há uma igualdade à luz da lei –, não consegue explicar porque é que a mulher deve aceitar e perdoar as infidelidades do homem, mas nunca pode acontecer o contrário. “É uma coisa que não se consegue digerir.”
Cada um sabe aquilo que consegue engolir. Mas a nós, mulheres, andaram milhares de anos a enfiar-nos coisas pela goela abaixo. E agora são os mesmos que querem convencer-nos da grande superioridade do Ocidente em relação aos direitos das mulheres que nos explicam (cheios de boas intenções) que “a energia da mulher não combina com o trabalho” ou que o feminismo nos oprime e persegue os homens (coitados). “Eu cá não sou feminista”, dizem algumas, horrorizadas com a ideia de um movimento que nunca retirou direitos a nenhum ser humano nem procura impor a superioridade de um género sobre o outro. Não, minhas senhoras, o movimento que faz isso chama-se “machismo”. O feminismo serve para outra coisa: serve para que haja direitos iguais, respeitando as diferenças, para que haja escolhas, para que cada um e cada uma encontre as formas de vida que mais lhe convêm, em liberdade e respeito mútuo.
Os mesmos que se horrorizam com a ideia da opressão do feminismo, os que querem “proteger as nossas mulheres”, os que se indignam com as burkas, ficam num silêncio estranho enquanto na televisão e nas redes sociais se repetem uma e outra vez as imagens de um homem enfurecido a espancar a mulher em frente ao filho de 9 anos, no Machico, na Madeira.
“Vi umas mensagens e fiquei cego, foi isso que aconteceu”, disse ele ao Diário de Notícias da Madeira. Os homens não digerem, já se sabe. E deixam de ver, diz este. São uns seres superiormente racionais, a quem a lei em tempos já serviu para isentar de culpas quando ficam tomados pelas emoções. Era o tempo dos crimes “passionais”. Lembram-se? Mas é ela quem, segundo as notícias, pode mesmo ficar cega para sempre, na sequência das agressões. E sou eu que não tenho estômago para ouvir os gritos da mulher e as súplicas da criança, enquanto ele a desfazia a murros e pontapés, porque viu “umas mensagens” e ficou “cego”.
Ainda cresci a ouvir a minha mãe contar como lhe mediam com uma régua o comprimento da saia no colégio ou a proibiam de usar calças. Lembro-me de como lhe foi ensinado que “uma senhora não anda pelos cafés”. E tenho muito presente o momento em que, com 13 ou 14 anos, entrei num café de uma freguesia rural de Gaia e os olhares masculinos me atingiram como pedras, até me fazerem recuar por aquele não ser o meu lugar.
O lugar das mulheres é conquistado a cada instante. Não nos é dado. Nem em casa, nem na rua, nem no trabalho. E o que é preciso não esquecermos é que cada uma das coisas que hoje nos parece normal, como o direito de viajar, trabalhar, gerir as próprias finanças e ter uma palavra nas escolhas que afetam as vidas dos nossos filhos, são conquistas ganhas a custo e sempre precárias.
A civilização ocidental viveu muito bem, durante milhares de anos, com o apagamento, a opressão, a exploração das mulheres. Se não tivessem sido as próprias a lutar para se libertarem, provavelmente ainda hoje estaríamos de lenços sobre a cabeça, fechadas em casa, sem outra função que não procriar e cuidar da casa e dos filhos. Temos de ter consciência disso para não nos deixarmos enredar nas conversas dos que querem salvar-nos de nós próprias ou dos que acham que estávamos mesmo a pedi-las.
Nós andamos a fazer corridas de obstáculos, para conseguir ser tudo o que se espera de nós. Mas a culpa não é do feminismo, que nos derrubou muros. É de um sistema feito para funcionar com todo o trabalho que fazemos em casa sem recebermos nada em troca, um sistema que precisa dos filhos que geramos, mas que nos priva de usufruir deles sem culpa. Um sistema que quer pôr-nos a consumir aquilo de que não precisamos e nos deixa sozinhas e exaustas a responder às exigências da família e do trabalho.
Do que precisamos é de dar as mãos umas às outras e deixar bem claro que aqui ninguém está disponível para andar para trás. O tempo da Maria Cachucha não é para nós. E também não será para as nossas filhas.

Nenhum comentário:
Postar um comentário