segunda-feira, 1 de setembro de 2025

Louvor do esquecimento

Em 1915, Gabrielle Darley matou, em Nova Orleães, nos Estados Unidos da América, o homem que a enganara e prostituía. Foi presa e absolvida. Dez anos depois, quando Gabrielle já tinha refeito a sua vida e usava o apelido do marido, o filme The Red Kimono (Sublime Redenção), elaborado a partir dos registos daquele caso em tribunal, tornou-se um sucesso.

Na era da digitalização, o drama de Gabrielle Darley tornou-se comum.

A expansão dos registos públicos e o seu acesso imediato e ilimitado, em qualquer smartphone, reduziu as nossas vidas a dados. Informação pronta a ser recolhida, conservada, tratada, vendida. Um bem.


Não é um fenómeno novo o registo em arquivo de momentos das nossas vidas. O nascimento, o casamento, a morte, a compra de uma casa, notícias em jornais… Mas o acesso instantâneo a informação disponível online alterou profundamente a forma como os outros e nós próprios nos percecionamos. E, para tal, é irrelevante se isso resulta da informatização de arquivos públicos e privados, de informação que de forma voluntária (através da publicação de posts) ou involuntária disponibilizamos (ainda que indiretamente consentida, via clique em políticas de privacidade, que não lemos).

Hoje, ao conhecer alguém ou na iminência de conhecer, com frequência, googlamos e pesquisamos nas redes sociais para formar um pré-juízo, confirmar ou completar uma intuição. E fazemo-lo, não apenas no contexto pessoal, mas também profissionalmente. Hoje, raramente alguém será entrevistado sem que, antes, a sua “persona virtual” seja escrutinada.

Esta imagem, que resulta dos nossos dados e a todos é acessível, fixa-nos num status e condiciona as nossas futuras relações com os outros.

No passado, a memória era fluida e limitada às testemunhas ou a quem escutou ou leu sobre uma determinada pessoa. Tal encerrava, em si, o direito e a possibilidade de nos reinventarmos. De, continuamente, tentarmos ser a pessoa que almejamos.

Hoje, um arquivo global é também “disciplinador”, pois a internet permite a recolha, ou tem a possibilidade de permitir, a uma miríade de entidades e pessoas, que desconhecemos, para tratar e utilizar/visualizar a “informação” que produzimos.

É inevitável sermos condicionados no nosso comportamento online, pois, progressivamente, já nos tornamos conscientes do risco de terceiros usarem os nossos “dados” contra nós. Seja no sentido literal do termo, para nos influenciar, controlar ou, quiçá, nos negar um emprego ou um seguro de vida, seja para nos vender mais um produto ou serviço.

A lei reconhece os efeitos perversos que o arquivo global – que é a internet – pode encerrar, agora que a memória é cristalizada e omnipresente. E, embora não garanta a eliminação de todos os registos, nem nos proteja da utilização massificada dos dados, procura assegurar, num grau razoável, que, junto de estranhos, não seremos pré-julgados por algo que postamos ou fizemos, apenas e tão-só, em resultado de uma pesquisa online….

A lei (o Regulamento Geral de Proteção de Dados – RGPD) configura o “o direito a ser esquecido”, na perspetiva de controlo de dados pelo seu titular. Mas este direito é mais do que isso. É um bem comum, necessário ao florescimento do ser humano. Saber que podemos invocar o direito ao esquecimento é um direito a um futuro em aberto.

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