segunda-feira, 29 de setembro de 2025

O jogo da imitação

No verão de 2022, Blake Lemoine, um engenheiro da Google, foi despedido na sequência de uma entrevista ao jornal The Washington Post, na qual afirmava que o LLM tinha “vida”, era capaz de sentir. Era como um rapazito de 8 anos, que sabia Física.

Desde então, com a proliferação de LLM e da sua utilização, multiplicam-se as notícias alarmantes de relações de dependência, suicídios, psicoses. Vidas e relações destruídas por conta de uma máquina.

Não obstante os LLM estarem cada vez mais capazes, tal não resulta de um desenvolvimento tecnológico face aos primeiros modelos, mas de uma maior capacidade de processamento. Mais dados e mais chips para processar conteúdos. Uma esponja que absorve todo o conhecimento escrito, a música que criámos, todas as nossas reações faciais, as nossas vozes… para nos imitar.


Os LLM tornaram-se tão omnipresentes, e a sua utilização tão mundana, que o primeiro-ministro sueco confessou, sem pejo, que usava o ChatGPT como mais um conselheiro. O LLM não é só uma biblioteca que se consulta para recolha de informação, mas sim um parceiro para discutir ideias. E, como com qualquer par que valorizamos, é capaz de nos influenciar.

Mas se sabemos que são apenas algoritmos e máquinas a processar informação, a fazer inferências a partir da informação disponível e a disponibilizar essa informação, porque tão facilmente nos iludimos quanto à sua eventual consciência?

Porque estão desenhados para parecerem humanos. Porque o seu sucesso comercial é garantido se connosco criarem um simulacro de uma relação humana.

No jogo da imitação é determinante a utilização de uma linguagem fluente. Um carro pode conduzir autonomamente, mas não criamos empatia, porque não “conversa” connosco.

Ajuda ter uma personalidade empática. É tão agradável quando as nossas questões são todas pertinentes, as nossas atitudes razoáveis. A memória de longo prazo, algo que está a ser introduzido, também ajuda a adaptar as respostas – ora aqui está um companheiro que não se esquece de nada, não para nos criticar, mas sim para nos afagar o ego de forma mais eficaz.

Com a introdução de agentes – ou seja, a capacidade de o LLM executar tarefas complexas –, a ilusão é completa. Afinal, este nosso amigo é um assistente supercapaz. Sabe comparar preços, planear viagens, marcar voos e hotéis, e muito mais e cada vez mais. Em breve o nosso cérebro pode ficar na prateleira…

Mas não tem de ser assim, nem deve. Estas são escolhas de design, e mostrando-se, como se mostram, danosas, devem ser limitadas pelo regulador. E deve a lei, também, assegurar que os produtores destas máquinas são responsabilizados, civil e penalmente, pelo seu comportamento.

Igualmente, importa reconhecer que esta dependência do mundo virtual é agravada pela forma como organizamos a nossa vida no espaço real. Se não investimos em espaços públicos agradáveis, onde podemos reunir-nos, em atividades pós-horário escolar (não apenas para os mais jovens) que promovam o desporto, a cultura e o convívio, seremos, cada vez mais, reduzidos ao nosso metro quadrado, onde o virtual substitui o real. Porque é cómodo, acessível e o exterior inseguro, degradado.

Em época de eleições locais, seria importante saber o que propõem os candidatos para promover a qualidade do nosso espaço público. Como podemos tornar as nossas cidades, vilas e freguesias mais “coletivas”, mais comunidade. Para que tenhamos uma vida real, no mundo real.

Terras raras e minerais críticos. Galeano tinha razão?

O mundo mudou neste século 21, e graças à explosão da globalização os bens passaram a ser fabricados nos mais diversos países e continentes pela disseminação do conceito e do uso das cadeias de valores. A produção de bens hoje é complexa, e fabricar um único bem pode representar etapas intermediarias de fabricação e agregação de componentes em diversos países antes de chegar ao consumidor final.

Abastecer essas cadeias de valores passou a ser crucial, e em boa parte feito com semicondutores e circuitos integrados (chips), pois estes são os componentes que viabilizam a fabricação desde relógios, computadores, celulares até automóveis que não existem mais sem a chamada “eletrônica embarcada”. Os semicondutores e outros produtos eletrônicos também necessitam de matérias primas chamadas minerais críticos, aí incluídas as terras raras.

Logo após o final da epidemia de covid-19, o mundo sofreu, pela primeira vez, graves consequências decorrentes da falta de semicondutores: muitas fábricas em diversos setores pararam, e a falta de produção provocou uma escassez que resultou em desemprego e inflação, que levou anos para ser debelada.

Desta vez teme-se pelo mesmo, só que as razões são diferentes, e devem-se à disputa por minérios travada principalmente entre Estados Unidos e China. Descontente com as negociações com o presidente dos Estados Unidos, o governo chinês ameaçou interromper a exportação de terras raras. A ameaça dos chineses foi consequência de Trump ter proibido empresas americanas de venderem seus chips avançados para a China. Ou seja, o conflito geopolítico estabeleceu-se como decorrência do uso de peças, componentes ou produtos e como forma de um país pressionar o outro. A discussão foi apenas suspensa, mas o assunto ainda não está resolvido.

O fato é que terras raras e outros minérios são decisivos na geopolítica. As terras raras — que não são raras, mas que abundam em poucos países — entre eles a China e o Brasil — incluem cerca de 17 elementos, entre os quais destacam-se o escândio, o ítrio e o lantânio, usados na fabricação de telas de celulares, motores de carros elétricos, sistemas de defesa, turbinas eólicas, ímãs e outros produtos fundamentais para a economia mundial. A China é forte não apenas por possuir as terras raras, mas por deter competência na extração e refino das mesmas. Só ela responde por 80% da capacidade mundial nesse quesito.

O Brasil, apesar de possuir reservas enormes, infelizmente não possui domínio sobre essas etapas, e, portanto, depende da China. E o Brasil também é rico em reservas de outros minérios como lítio, níquel, cobalto e nióbio, que por sua vez são vitais para a produção de produtos chamados de alta tecnologia, mas, da mesma forma, no máximo conseguimos realizar a extração, não detendo a tecnologia para fazer nem o processamento e muito menos obter bens como baterias para celulares, carros elétricos ou computadores.

Infelizmente os países sul-americanos são donos da sina de apenas saberem exportar minério bruto para depois importarem os respectivos produtos finais, que é onde entra a agregação de valor. No caso da energia solar, a situação é lamentável se considerarmos que somos um país com alta exposição solar. No entanto não sabemos produzir nem os bens movidos por energia solar e nem os equipamentos fotovoltaicos que são usados para transformar a luz solar em energia, que precisam ser comprados da China.

Em 1973, Eduardo Galeano, um jornalista uruguaio, escreveu seu livro mais famoso, As veias abertas da América Latina. Ali ele descreve com muita competência como os países da nossa região não passam de simples fornecedores de matéria prima para os países mais desenvolvidos. Estes não pagam quase nada por elas, mas fazem o processamento das mesmas em seus países e assim fabricam os produtos sofisticados, que depois acabamos comprando, e, por sinal pagando muito.

Será que nada mudou em mais de meio século?

O neo-coronelismo

Tem sido consenso, entre os analistas políticos, que o país atravessa um dos piores momentos de sua vida parlamentar. O articulista Merval Pereira, de O Globo, é duro na crítica: “o Congresso bate o recorde de ações amorais”.

Deputados se elegendo prefeitos, prefeitos se elegendo deputados, senadores se elegendo governadores, governadores se elegendo deputados; enfim, esse é o retrato da nossa vida parlamentar.

A estampa visual do presidente da Câmara, deputado Hugo Mota, não corresponde ao seu pensamento. Muitos acham que é um novo representando a velhice. De uma família política da região de Patos, na Paraíba, chegou à presidência da Câmara sob a chancela do deputador Arthur Lira, também um representante da Política do “é dando que se recebe.”. Ou seja, o Congresso Nacional continua a ser um dos bastiões do coronelismo no Brasil.

Dito isto, é de se perguntar: “há sinais de mudança a vista? Pouco provável que isso ocorra. O coronelismo na política é uma árvore de raízes profundas.


Como se sabe, o coronelismo é um fenômeno da política brasileira ocorrido durante a Primeira República. Caracteriza-se por uma pessoa, o coronel, que detinha o poder econômico e exercia o poder local por meio da violência e trocas de favores.

A palavra coronelismo é, na realidade, um abrasileiramento da patente de coronel da Guarda Nacional. O cargo era utilizado para denominar os cargos aos quais as elites locais poderiam ocupar dentro do escalão militar e social brasileiro.

Esse fenômeno teve início durante o Período Regencial (1831-1842). Como o Império do Brasil encontrava sem um Exército forte e centralizado, o governo apela para os dirigentes locais a fim de constituir milícias regionais e assim, combater as rebeliões que aconteciam no país.

Naquele momento, foram colocados à venda postos militares como o de tenente, capitão, major, tenente-coronel e coronel da Guarda Nacional.

Aos olhos da população local, ser coronel era equivalente a ter um título nobiliárquico e passou a legitimar muitas das ações dos chefes locais. Os coronéis podiam recrutar pessoas para compor a força militar do governo.

O fenômeno do poder do coronel foi tão presente que se confunde com outros termos relacionados, tais como mandonismo, clientelismo e, até feudalismo. Na América hispânica encontramos similitude com o caudilhismo.

Historinha do coronel Chico Heraclio, o último coronel do Nordeste: mandou na cidade do Limoeiro (PE), afirmando que as eleições em sua cidade “tinham que ser feitas por mim”. Heráclio era de que em dia de votação distribuía aos eleitores, em envelopes lacrados, as chapas de seus candidatos. Um mais afoito dirigiu-se a ele, depois de ter votado: “Fiz tudo certinho, coronel, como o senhor mandou. Agora me diga uma coisa: em quem eu votei?’”. A resposta veio rápido: “Nunca me pergunte uma coisa dessa. O voto é secreto, meu filho”.

Outro episódio engraçado: o do pênalti que o coronel mandou o juiz cobrar a favor de seu time, o Colombo. Foi em um jogo com um clube do Recife. O empate sem gols permanecia quando, a poucos minutos do fim, o árbitro marca a penalidade máxima para os visitantes. A confusão foi armada, sem que Chico Heráclio soubesse o que estava ocorrendo. Ao ouvir as razões do juiz, decidiu dar a razão a ele. Um assessor disse-lhe no ouvido que o Colombo perderia o jogo. Então o coronel ordenou: “cobra, sim, mas contra a outra barra”.

Os territórios controlados politicamente pelos coronéis eram denominados “currais eleitorais”. Neles, qualquer um que se negasse a votar no candidato apadrinhado pelo coronel poderia sofrer violência física e até morrer. Esse método ficou conhecido como o Voto de Cabresto.

Apesar de toda hegemonia durante a República Velha, o coronelismo perdeu espaço com a modernização dos centros urbanos, bem como pela ascensão de novos grupos sociais. Igualmente, a Revolução de 30, liderada por Getúlio Vargas, pois fim a esta maneira de fazer política.

Até hoje podemos verificar sua influência no Brasil ao perceber o domínio de uma mesma família em certas regiões brasileiras. Basta olhar para a cara do Congresso para constatar a força do neocolonialismo.

Basta ver também que o Congresso tender a jogar no baú do esquecimento, projetos de lei que contrariem os interesses de bancadas que jogam no tabuleiro do “toma-lá-dá-cá”. Há inúmeros projetos de reforma política que continuam no baú do esquecimento.

Haveria mecanismos para se fazer uma reforma em profundidade? Alguns fatores e variáveis são citados, dentre as quais a reforma política e eleitoral, o fim ou redução da reeleição cruzada, barreiras para que ex-governadores imediatamente disputem o Senado, ou senadores retornem à Câmara sem intervalo, cláusulas de barreira mais fortes, que dificultariam a proliferação de partidos usados como meras legendas de aluguel, sustentáculos dos coronéis locais; a adoção do voto distrital misto ou distrital puro, que poderia enfraquecer oligarquias estaduais, ao aproximar representantes de bases menores, porém sob risco de reforçar o poder de coronéis locais.

Na área da regulação da comunicação política, a medida mais adequada, segundo os especialistas, seria reduzir a concentração de concessões de rádio e TV em famílias políticas.

Eis o dilema central: coronelismo moderno é um sistema de poder que se adapta, quando se fecha uma porta, ele encontra outra.

Da mui antiga arte da desleitura

Uma das competências que as escolas e até as universidades deviam dar aos alunos que as frequentam seria a da leitura. Saber ler um texto é uma competência essencial, na vida.

Infelizmente, a maioria dos estudantes sai das escolas e muitos deles das universidades, com diploma em riste, evidenciando uma total incapacidade de interpretar correctamente um texto. Saber ler um texto serve a professores, médicos, juízes, engenheiros, enfermeiros, biólogos, astrónomos, informáticos, mecânicos, electricistas, empresários, serve, em suma, a toda a gente, nos mais diversos caminhos da vida.

Porém, quando lemos jornais, livros, comentários nas notórias redes sociais, pasmamos com a manifesta iliteracia da assim chamada geração mais qualificada de sempre. O mais grave é que tal iliteracia roça, muitas vezes, pela mais rotunda boçalidade. Muita desta gente que não sabe ler um texto muito claro mostra um total desrespeito por quem sabe, reagindo com os mais destemperados dislates, nos palcos mediáticos que lhes são oferecidos e que se tornam verdadeiros focos infeciosos de desinformação e de deseducação. O espectáculo é simplesmente assustador, mas nós lá vamos, cantando e rindo, exibindo uma aparatosa e cintilante estatística de diplomas e conquistas académicas. Cada um consola-se como pode e com o que tem…

Tenho tido uma vasta, triste e dolorosa experiência de assédio, às vezes ideológico, outras vezes, simplesmente inepto e grosseiro, outras vezes, ainda, as duas coisas ao mesmo tempo, sendo raríssima a cara lavada de um comentário minimamente asseado. Faz pena, porque é um retrato muito claro de uma suposta elite, o qual não augura nada de bom para o futuro do desenvolvimento deste país, no concerto das nações europeias. Reage-se a uma sátira, como se fosse um texto erudito, analisa-se um soneto como se fosse um ensaio ideológico, arrasa-se boçalmente um texto, do mesmo passo que se revela uma aflitiva ignorância do assunto que o texto glosa, enfim, uma paisagem de grosseria contentinha e de ignorância que se ignora. A desleitura é quem mais ordena. Mas há mais grave: a desleitura é, muitas vezes, enviesada e usada como torpe arma de difamação. Com uma total falta de escrúpulos, reveladora de que se trata provavelmente de executar uma “ordem de serviço” dimanada de algum departamento com uma missão a cumprir.

Tudo isto é muito mau, muito vil e muito feio.

Neste milieu cheio de miasmas, a elegância é quem menos ordena. Sem educação e sem educação cívica (que alguns pais rejeitam), a nossa sociedade evolui assintoticamente para um futuro paraíso de selvagens, como aquele que retratou o grande Melville numa das suas narrativas.
Eugénio Lisboa

domingo, 28 de setembro de 2025

Pensamento do Dia

 


A artimanha de olhar sem ver

Numa foto de sonda espacial do solo de Marte destaca-se uma rocha com traços semelhantes a nariz e boca, o que leva o observador a reconhecer o desenho de um rosto humano, quando se trata da ação aleatória da natureza. Esse tipo de ilusão, muito frequente, deve-se ao fenômeno mental conhecido como "pareidolia", tendência da percepção de se guiar por padrões já estabelecidos. Acredita-se, assim, ver coisas que não estão de fato presentes.


Pode acontecer o contrário: não ver o que está à frente. A inflação cai, o emprego sobe, mas a percepção comum diz que está tudo errado. Às vezes, o fenômeno é alucinatório. De modo geral, é uma forma negativa da pareidolia, extensiva aos fatos. No histórico julgamento de Nuremberg, Hermann Göring, segundo de Hitler no poder de Estado, sustentava nunca ter matado ninguém nem sabido de atrocidades. Os juízes condenaram-no à evidência da forca, que ele evitou com uma cápsula de cianeto na prisão.

Já entre nós entra para a história uma negação bizarra. No julgamento da trama golpista, um magistrado do STF sustentou durante 13 horas de fala que não enxergava evidência de articulação pelo clã ex-presidencial de um golpe de Estado. Ponto cego era justamente o excesso de provas: movimentações, delações, rascunhos de estado de sítio, até mesmo um plano para assassinar o presidente da República e seu vice. A um colega do STF, nada menos que a forca. Ver demais seria não ver, talvez apenas ouvir: um "choro de perdedores".

É a pareidolia do juiz. Nesse caso, porém, fenômeno de grupo, compartilhado por agronegócio, empresários, financistas, congressistas, com percepção toldada por circuitos blindados de interesses. Traduzidos em desinformação, resultam numa cegueira extensiva à população em quase um terço, composto de gente que culpa o sistema por seus fracassos, de hordas de idosos jogados dos bingos para grupos de zap, de ignorantes políticos. Todos expostos à enganação pastoral e à cacofonia do partido digital golpista. Burla-se até o nariz: uma visão olfativa detectaria o esgoto transbordado.

Mas há algo de auspicioso nessa injunção de cegamento aos fatos. Três quartos de século atrás, Roland Barthes associava o efeito artístico das comédias de Chaplin ao teatro de fantoches, cujo público se divertia com o fato de a mocinha não perceber as evidentes maquinações do vilão (em "Mitologias", escrito pelo mestre francês). Nos filmes, desapercebido do perigo, Carlitos com lírica ingenuidade alargava a percepção do espectador: ver alguém não ver é ver duplamente. Assim como os espectadores do julgamento da trama golpista: viram o juiz não ver.

Chapliniana, auspiciosa, a tensão entre o que salta aos olhos e a impotência de não confiar no próprio testemunho é o que alerta a consciência para a enormidade da ameaça contra o Estado democrático de Direito.

Por um Brasil mais aberto, próspero e justo

Caríssimos leitores e leitoras, sabemos todos que a eleição de 2026 tem tudo para produzir um efeito profundo nos destinos de nosso país. Permitam-me fazer-lhes uma convocação. Chega de choradeira, chega de cabeça baixa. Vamos levantar a cabeça e agir. Não é concebível que 213 milhões de cidadãos se curvem aos desmandos de uma meia dúzia em Brasília. Isso é aceitar insulto em cima de injúria.

Minha proposta – e creio que vocês a verão como realista – é contatar 1 milhão de cidadãos sérios para que eles multipliquem esse esforço, identificando o maior número possível de pessoas igualmente sérias, atiladas, corajosas, competentes e com vocação de liderança. A ideia é motivar essas pessoas a se candidatarem a deputado federal e, onde for realista, a senador. Penso que um esforço dessa envergadura há de eleger um número suficiente, pelo menos, para modificar o “clima” que tem prevalecido na Câmara federal. É pouco? Sim, é pouquíssimo. Mas é melhor do que nada, e muito melhor que permanecer de cabeça baixa.

Essa convocação não parte de um vazio. Parte de uma base: um esboço de programa de governo, fundado em cinco pontos fundamentais (ver abaixo). Aos que estiverem de acordo com ele, ou pelo menos que o considerem digno de debate, peço compartilhálo com conhecidos, amigos, parentes e instituições, do Oiapoque ao Chuí. Aos que não estiverem de acordo, apelo a que proponham outro.

Permito-me apresentar-lhes a seguir o esboço de programa a que me referi.

1) Crescimento com abertura e produtividade: reinserir o Brasil nas cadeias globais de valor com acordos comerciais estratégicos, redução de barreiras tarifárias e estímulo à exportação de bens industriais e serviços. Reformar o sistema tributário para simplificar e premiar o investimento produtivo. Promover políticas de concorrência e inovação tecnológica como motores do crescimento;

2) Responsabilidade fiscal com qualidade do gasto público: consolidar o equilíbrio das contas públicas, com foco no controle da dívida e na previsibilidade de regras fiscais. Substituir gastos ineficientes por investimentos em capital humano, infraestrutura e segurança pública. Fortalecer mecanismos de avaliação e transparência na gestão pública;

3) Educação e primeira infância como prioridades nacionais: universalizar o acesso à creche de qualidade e à préescola. Melhorar a formação e remuneração de professores. Criar incentivos federais para que Estados e municípios avancem em alfabetização na idade certa e combate à evasão no ensino médio;

4) Transição ecológica e reindustrialização verde: tornar o Brasil líder global em energias renováveis, descarbonização da agropecuária e produção de i nsumos verdes. Criar uma nova política industrial voltada para cadeias produtivas de baixo carbono, com crédito, P&D e parcerias público-privadas; e

5) Redução da desigualdade com oportunidades e proteção social eficaz: aprimorar o programa de transferência de renda com foco em condicionalidades e emancipação. Ampliar a cobertura do seguro-desemprego e da Previdência para trabalhadores informais. Estimular o emprego com políticas ativas de inserção no mercado de trabalho, especialmente para jovens e mulheres.

Feita essa convocação, vem a pergunta-chave: quem poderá liderar uma transformação dessa ordem? Os nomes que logo vêm à nossa mente talvez possam. Ou não. Fora de dúvida é que Jair Bolsonaro está fora do baralho; só não estará se os titulares de nossas instituições federais perderem de vez o rumo. Lula contorce-se para aproveitar a oportunidade que o sr. Donald Trump lhe ofereceu para posar de estadista. Só os muito obtusos não percebem que a reeleição dele aprofundará a crise a que estamos fadados em razão da “armadilha da renda” média. Observe-se que essa perspectiva tem como pano de fundo um quadro mundial macabro. Os Estados Unidos, a outrora exemplar democracia, têm na Presidência o abilolado sr. Trump. Percebendo-o, creio eu, como o principal perigo do momento para a ordem internacional, quem está se apresentando para o papel de “poder moderador” mundial, imaginem, é ninguém menos que a China continental.

Voltando ao Brasil, peço vênia para martelar uma tecla que já tive ocasião de expor neste espaço. O grande omisso político de nossa sociedade são as camadas genericamente designadas como “classe média”. Daqueles cinco ou seis por cento que compõem a ultraelite econômica, que detêm metade da riqueza e da renda, não me parece que devamos esperar algo útil. Na outra ponta, seria puro humor negro esperar um protagonismo importante dos 30% que mal sabem como vão se alimentar amanhã.

Da classe média somos forçados a esperar muito, mas o fato é que pouco ou nada sabemos sobre ela. É homogênea no tocante a valores políticos? Tem sequer uma tênue consciência da importante mudança para melhor que poderia propiciar ao País ou do desastre em proporções porteñas a que poderá ser levada (a primeira classe também cai) se optar ad aeternum pela preguiça e pela mediocridade?

Um chamado ao mundo diante do genocídio e das contradições do poder global

O planeta vive um ponto de fratura histórica. Em Gaza, centenas de milhares de pessoas jazem sob os escombros de um massacre transmitido ao vivo. Crianças morrem antes mesmo de pronunciarem seus nomes, hospitais se transformam em covas coletivas, escolas em alvos militares. Já não se trata apenas de geopolítica: trata-se da sobrevivência mínima da dignidade humana. Cada silêncio, cada hesitação, é cumplicidade. Não há neutralidade possível diante do genocídio.

É neste contexto que se impõe a necessidade de uma ação internacional direta: flotilhas humanitárias escoltadas por estruturas legítimas de proteção, capazes de abrir corredores para levar pão, remédios, água potável e esperança a uma população sitiada. Não é ingerência. Não é afronta à soberania. É solidariedade prática, é direito universal à vida. O “nunca mais” que ecoou após Auschwitz não pode morrer em Gaza.

Mas a luta não se encerra na Faixa sitiada. O que se vê no Oriente Médio e na Palestina revela as fissuras mais profundas de um sistema internacional em disputa. O Ocidente, liderado pelos Estados Unidos, insiste em bombardear, sancionar e subjugar povos inteiros em nome de uma democracia esvaziada de conteúdo. Já os novos polos emergentes, reunidos nos BRICS, prometem uma alternativa. Mas que alternativa é essa?


O Irã, parte desse bloco, ergue-se como voz contra o imperialismo ocidental, mas internamente mantém uma ordem que oprime mulheres, sufoca dissidências e reprime a juventude que clama por liberdade. Como falar de dignidade global se metade de sua população vive sob um regime de vigilância e punição moral?

A China, gigante econômico que hoje sustenta quase 20% do PIB global, apresenta-se como esperança de um mundo multipolar. Mas nos seus parques industriais floresce o “996”: jornadas de 9h às 21h, seis dias por semana. Uma rotina que arranca da carne e da mente dos trabalhadores toda energia vital. Uma ordem global fundada sobre a exaustão humana pode ser alternativa? Ou é apenas mais um espelho invertido do mesmo inferno capitalista?

A Índia, celebrada como democracia vibrante, convive com a permanência de castas, a exploração infantil e a escravidão moderna de milhões. Qual a legitimidade de um Sul que não protege os seus, mas perpetua servidões ancestrais?

E mesmo dentro do Brasil, que poderia liderar um caminho emancipatório, ainda se naturalizam desigualdades raciais, devastação ambiental e a exploração brutal da força de trabalho. O que temos a oferecer ao mundo se não somos capazes de proteger nossos próprios povos originários, negros, mulheres, trabalhadores e trabalhadoras?

O desafio, portanto, é este: não basta trocar o eixo de dominação. Uma nova ordem mundial que apenas substitui Washington por Pequim, ou Bruxelas por Teerã, não é alternativa, mas sim continuidade da barbárie. O que o planeta exige é uma ruptura ética: colocar no centro a vida, o descanso, a saúde mental, a igualdade de gênero, a justiça social, a infância protegida. Uma ordem fundada não no lucro ou na lógica de poder, mas na dignidade universal.

É aqui que a imagem das flotilhas humanitárias ganha força simbólica. São mais do que navios carregando pão e remédio: são embarcações que desafiam a lógica do império e do mercado, são a materialização de uma desobediência civil planetária. Se os Estados negam corredores, os povos abrirão caminhos pelo mar. Se a diplomacia falha, a solidariedade se fará em ondas.

O século XXI está sendo escrito diante de nossos olhos. Ou teremos coragem de enfrentar as contradições – inclusive as que habitam dentro dos nossos aliados estratégicos – ou seremos engolidos por uma multipolaridade cínica, que multiplica apenas a dor. O chamado é urgente: erguer flotilhas pela vida, pela dignidade, pela humanidade. Porque a neutralidade já não é possível. Ou navegamos rumo à esperança, ou afundaremos juntos na barbárie.
Flaviano Corrêa Cardoso

Falta sair às ruas para defender um projeto de país

Estava lá no domingo no MASP, estava longe, não ouvi discurso nem show, escutava a multidão conversando, um grupo de maracatu, um padeiro aleatório, gritos de ordem aqui e lá e, de repente, o “Sem Anistia” dominava tudo. Lembrei do Fora Collor, Fora Bolsonaro, Fora FHC, Fora Dilma, Fora Temer e Fora Qualquer Coisa de 2013. Por que é mais fácil juntar gente contra do que a favor?

Evidente que nesse movimento contra algo há muitos desejos a favor, mas essas vontades políticas não são nomeadas, recheadas de fissuras e dissensos. Fica mais fácil dizer não, talvez porque o sim é múltiplo e difuso.

Mas aos poucos, e organicamente, as reivindicações de diferentes setores da sociedade vão ganhando o corpo de um projeto mais democrático de país. O fim da escala 6×1 só não é unanimidade porque empregadores não gostam da ideia e parlamentares que trabalham 3×4. É uma reivindicação que vê no horizonte uma reforma trabalhista que recupere os direitos triturados por Temer e a uberização do trabalho. Esse ponto é tortuoso já que o discurso do empreendedorismo rege nosso tempo.

A isenção para quem ganha até R$ 5 mil é importante, mas o que quer se ver é a taxação dos super-ricos e das heranças. parte de uma reforma tributária com menos impostos sobre o consumo e mais sobre renda, o que enfrentaria nossas desigualdades e privilégios.


A regulação das redes, isto é, fazer das plataformas aliadas contra a publicação de conteúdos criminosos como fake news, pedofilia e discurso ódio e exigir a transparência dos algoritmos, que nada têm de neutros, seria um avanço para uma democracia digital abandonada.

Já são pautas histórias e exaustas defender mais investimentos em saúde e educação públicas, uma política habitacional massiva. Transporte público gratuito. Além uma política de segurança pública que seja mais inteligente ao invés de assassina, prenda menos e pare de oprimir trabalhadores periféricos.

Mas enquanto isso, as pautas urgem. A PEC da Blindagem caiu no Senado por unanimidade, mas o PL da Anistia ganhou o nome de Dosimetria, com Paulinho da Força tentando emplacar o projeto pelos corredores do Congresso. Um acordo com o PT aqui, outro acordo com o bolsonarismo lá e Centrão calculando ganhos, a proposta passa. Pela isenção do IR e contra a anistia, é bom as ruas deixarem as faixas prontas e as vozes aquecidas.

Podres poderes do Brasil

353. Esse foi o número de deputados federais que votaram a favor da Proposta de Emenda à Constituição que tentou alterar o artigo 43 da Constituição brasileira. De forma curta e grossa, a PEC da Blindagem, como ficou conhecida, foi uma tentativa de ampliar as prerrogativas e garantias de todos os congressistas, com o objetivo de dificultar que eles pudessem ser alvos de processos judiciais.

A proposta previa ainda que os parlamentares do Congresso Nacional "não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável, nem processados criminalmente, sem prévia licença de sua Casa".

Pois bem. Ainda que a PEC da Blindagem tenha sido barrada pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado por unanimidade na quarta-feira, após mobilização popular, é preciso estarmos atentos para o fato de que a manutenção de privilégios não é novidade no parlamento brasileiro.
Parlamento como instrumento de exclusão


Num outro setembro, há exatos 175 anos, duas importantes leis foram aprovadas no Brasil. O contexto era outro: o Brasil era um império escravista, no qual a cidadania e o direito ao voto eram usufruídos por um número reduzido de brasileiros, excluindo de antemão todas as pessoas escravizadas, todos os indígenas, todas as mulheres, e todos os homens livres que ganhassem ao menos de 100 mil réis por ano.

O critério censitário imposto ao direito de voto no Brasil Imperial produzia uma exclusão ainda mais profunda. A renda mínima exigida correspondia, em média, ao faturamento anual de um comerciante de médio porte, mas era seis vezes menor que o valor de mercado de uma pessoa escravizada em 1850. A disparidade revela como o acesso ao voto estava intimamente ligado à posse de escravizados, estabelecendo uma conexão direta (mas não obrigatória) entre cidadania política e propriedade de seres humanos.

Dito de outra forma: ser proprietário de escravizados era uma das garantias de exercício político no Brasil de então.

Essa correlação entre a propriedade de pessoas escravizadas e a organização e prática da política formal, fez com que parte significativa do parlamento brasileiro colocasse seus interesses de senhores de escravizados como sinônimo dos interesses de toda nação - que era majoritariamente formada por pessoas escravizadas, e homens e mulheres livres pobres que não tinham acesso à política formal.

Foi em nome desses interesses e da urgência em acobertar crimes cometidos por políticos e por importantes membros da elite econômica do país, que foram aprovadas em setembro de 1850 a Lei Eusébio de Queiroz (04/09) e a Lei de Terras (18/09), indicando uma mudança fundamental em relação ao trabalho, à escravidão e à estrutura fundiária.

A Lei Euzébio de Queirós abolia, pela segunda vez, o tráfico de africanos escravizados para o Brasil. A primeira lei de extinção do tráfico negreiro no Brasil foi aprovada em 1831, sob forte pressão da Inglaterra. Poucos anos depois, o comércio de africanos escravizados foi retomado com intensidade, entre 1835 e 1850, mais de 850 mil africanos foram desembarcados ilegalmente no país.

Com a anuência do Estado brasileiro, autoridades locais, forças policiais, grandes comerciantes e proprietários rurais participaram ativamente da manutenção do tráfico, consolidando uma prática criminosa que envolvia os principais setores da elite econômica e política do Império.

Quando a Lei Eusébio de Queirós foi aprovada, em 1850, encerrando oficialmente o tráfico atlântico, o texto legal não fez nenhuma menção aos crimes cometidos ao longo das duas décadas anteriores.

A omissão revelava a conivência do governo imperial diante das violações e protegia de qualquer responsabilização os grandes traficantes e políticos que haviam se beneficiado diretamente da chegada maciça de africanos escravizados. A medida acabou preservando os interesses da elite agrária, comercial e política, valorizando os cativos já existentes no país e assegurando a continuidade da economia escravista.

Se isso não bastasse, duas semanas depois outra lei foi outorgada. A Lei de Terras estabeleceu que o acesso a novas áreas agrícolas só poderia ocorrer por meio da compra, extinguindo a possibilidade de aquisição pela simples posse. Na prática, a lei impedia que trabalhadores pobres livres ou futuros libertos pudessem conquistar terras, uma vez que não tinham recursos financeiros, garantindo que a propriedade rural permanecesse concentrada nas mãos da elite.

Assim, o Parlamento brasileiro fez com que as duas medidas juntas garantissem que o poder econômico e político continuasse concentrados nas mãos dos senhores de escravos, que mantiveram a escravidão vigente por mais 38 anos, usando de maneira deliberada africanos que haviam sido escravizados de maneira ilegal segundo as próprias leis brasileiras.

E assim como ocorreu no último domingo, quando multidões de brasileiros tomaram as ruas para denunciar o absurdo da PEC da Blindagem, as mudanças sociais, econômicas e políticas do final do século 19 que levaram à abolição da escravidão em 1888 só ocorreram por conta da mobilização popular, por meio daquele que foi o primeiro grande movimento social brasileiro: o abolicionismo.

Embora nem a abolição da escravidão, nem a instauração da república (1889) tenham abalado a concentração fundiária no Brasil, o jogo político passou a se dar de outra forma, e as ruas continuaram a ser um espaço poderoso para a população conquistar e exercer direitos.

Vítimas em Gaza são desumanizadas

Na sessão de sexta-feira da Assembleia Geral da ONU, algumas centenas de delegados de países-membros retiraram-se do plenário quando Benjamin Netanyahu subiu à tribuna. Já era esperado. E não foi a primeira vez. Em anos anteriores, porém, a debandada costumava ser inferior em número, e seu impacto político menor. Desta vez alinharam-se ao Brasil pesos pesados da diplomacia ocidental, que poucos dias antes haviam, por fim, reconhecido a Palestina como Estado independente. Portanto não ouviram quando o primeiro-ministro israelense qualificou esse reconhecimento como “completa loucura”, comparando-o a presentear a organização terrorista Al-Qaeda, logo depois do atentado do 11 de Setembro, com um Estado situado a pouco mais de 1 quilômetro de distância de Nova York.


Também não ouviram Netanyahu anunciar que Israel instalara alto-falantes por toda a Gaza ocupada e assumira o controle da telefonia celular local para transmitir seu discurso. Por alguns minutos, dirigiu-se em hebraico aos 20 reféns ainda vivos dos mais de 250 sequestrados pelo Hamas no massacre de 7 de outubro. Mas foi na língua universal, o inglês, que informou ao mundo que, se preciso, Israel iria “até o fim” na destruição do que resta de Gaza e sua gente.

Consubstanciava assim, involuntariamente, o sombrio relatório de 2.086 páginas publicado há um mês pelo respeitado grupo israelense B’Tselem (Centro de Informação Israelense para Direitos Humanos nos Territórios Ocupados) intitulado “Nosso genocídio”. No documento, os autores do estudo concluíam que o Estado e a sociedade de Israel cometem crime de genocídio em Gaza, tomando a desumanização de suas vítimas como condição fundamental para a ocorrência desse crime.

— As vítimas são despojadas de suas características humanas, retratadas como inerentemente imorais ou perigosas e vistas como coletivamente responsáveis por qualquer ato negativo cometido por indivíduos ou organizações específicas dentro de seu grupo — afirma o relatório.

Elas passam a ser vistas como pessoas a que as normas morais não se aplicam. Em recente visita a um assentamento na fronteira com Gaza, o próprio general Herzi Halevi, ex-chefe do Estado-Maior das Forças de Defesa de Israel (FDI), confirmou indiretamente que os dados do morticínio divulgados pelo Ministério da Saúde de Gaza não são mera propaganda do Hamas.

— Esta não é uma guerra de delicadezas — disse o militar. — Gaza tem uma população de 2,2 milhões de pessoas, e mais de 10% foram mortas ou estão feridas.

Nada tão diferente dos dados compilados na semana passada pelas autoridades de Gaza: 65.283 mortos e mais de 166 mil feridos, somando um total de 230 mil vítimas, a imensa maioria delas civis indefesos. Vale lembrar que os dados divulgados pelo ministério do Hamas se sustentam em listas nominais detalhadas — nome, sobrenome, idade, nome do pai e avô, número da carteira de identidade — e são facilmente verificáveis, uma vez que o RG de palestinos de Gaza é fornecido por Israel. Cabe acrescentar que nenhuma lista até agora inclui os desaparecidos sob os escombros do que um dia foi Gaza, nem os mortos por inanição, doenças decorrentes da desumanidade e destruição. Está restrita às vítimas de bombardeios, estilhaços ou disparos das forças de ocupação.

— Expresso minha admiração aos judeus que, dentro e fora de Israel, se opõem a essa punição coletiva. O povo palestino corre o risco de desaparecer — disse o presidente Lula quatro dias antes da fala de Netanyahu, em seu aplaudido discurso de abertura da Assembleia Geral.

Talvez se referisse de forma genérica aos grupos de intelectuais, acadêmicos, cientistas, escritores e judeus anônimos que condenam o projeto de erradicação da realidade palestina. Eles são muitos e deveriam multiplicar-se para honrar a história do Estado de Israel e do milenar povo judeu.

Individualmente, contudo, é apropriado citar o historiador israelense Lee Mordechai como merecedor de admiração por sua tenaz busca dos fatos. Ex-oficial do Corpo de Engenharia de Combate das FDI e professor sênior de História na Universidade Hebraica de Jerusalém, Mordechai vivia enfurnado em estudos sobre desastres humanos e naturais da Antiguidade quando ocorreu o 7 de Outubro terrorista e a resposta militar contra Gaza. Desde então, trabalha metódica e exaustivamente na montagem de uma documentação sobre crimes de guerra israelenses no território. A compilação original em hebraico, divulgada em janeiro de 2024, tinha apenas nove páginas.

— Não creio que o que está aqui escrito levará a qualquer mudança de política, nem convencerá muitos — esclareceu à época.

De lá para cá, o levantamento já recebeu sete versões atualizadas, inclusive em língua inglesa, de 124 páginas e mais de 1.400 notas de rodapé referenciando os milhares de fontes por ele acessadas. Está disponível on-line sob o título “Bearing witness to the Israel-Gaza war” (“Prestando testemunho sobre a guerra Israel-Gaza”). É aterrador. E obrigatório para quem respeita a História. Em entrevista a Nir Hasson, do diário Haaretz, explicou:

— Não estou aqui para confrontar as pessoas ou discutir. Escrevi o documento para que fosse divulgado. Para que, daqui a meio ano, ou um ano, ou cinco, dez ou cem anos, as pessoas possam voltar a ver que isso é o que eu sabia, o que era possível saber, já em janeiro ou março de 2024. E que aqueles entre nós que não sabiam escolheram não saber. Para mim, é importante olhar no espelho, importa divulgar essas coisas. É minha forma de resistência.

quinta-feira, 25 de setembro de 2025

Pensamento do Dia

 


O país visto por um canudo

“Desta vez, isto mexeu comigo”, comenta uma pessoa que nos últimos meses se tem dedicado a escrever teses em troca de dinheiro. O “isto” é a forma como a última cliente não se deu sequer ao trabalho de recolher a informação necessária para a tese de um MBA daqueles que se pagam a peso de ouro e que tornam dourado qualquer currículo. “Acho que devias começar a incluir no CV as notas das várias teses que já fizeste”, brinco, quando me conta que até já teve um 17, apesar de nunca ter frequentado aulas de MBA nem ter qualquer formação em Gestão. “Ou então guardas o dinheiro que te pagam e usas para pagar as propinas. Fazes isso com uma perna às costas”, insisto perante o desânimo de quem se vê metido numa fraude com que precisa de compactuar para ganhar dinheiro e que sabe que nunca chegará ao número de zeros com que ficarão os clientes nos seus ordenados depois de recebidos os canudos.

As universidades transformaram-se em fábricas de mentiras. O espírito crítico é visto com a desconfiança que causa a subversão a quem está mais interessado em métricas de empregabilidade. O conhecimento é um conceito obsoleto para quem acha que o Ensino Superior serve para “desenvolver competências”. A curiosidade fica substituída por um empreendedorismo dócil às regras do mercado, encaixotada em conceitos vagos e sexy como “pensar fora da caixa”.

Ainda sou do tempo em que era preciso produzir licenciados. Mas depois inventou-se Bolonha, para tornar os mestrados praticamente obrigatórios e, com esse truque, ir buscar propinas mais caras, para ajudar a financiar universidades cada vez mais à míngua de financiamento público. Agora, são todos mestres ou doutores, assim por extenso, mesmo que já ninguém os escreva nesse extenso que cheira a mofo e não condiz com a modernidade.


O que a modernidade quer é anunciar “a geração mais bem preparada de sempre”, embora não se saiba ao certo em que consiste essa preparação, quando são cada vez mais os que mal conseguem articular uma ideia. Pessimismo a mais? Olhem para os números: segundo um estudo da OCDE, 46% dos portugueses com idades entre os 25 e os 64 anos só conseguem compreender textos muito curtos e simples. Sim, está aqui a prova do que eu já intuía sempre que me vejo obrigada a explicar uma e outra vez uma notícia a quem não consegue ir além do título ou quando recebo emails de alunos de mestrado e doutoramento a pedirem-me para participar em inquéritos e o português é de tal maneira mau que tenho de os ler várias vezes até os decifrar.

E, não, este texto não é um manifesto elitista de quem acha que o Ensino Superior devia ser reservado aos iluminados e que o grande problema dos nossos tempos é que não vale a pena estudar História nem Filosofia porque se vai acabar na caixa de um supermercado. O conhecimento devia ser valorizado como um bem em si mesmo. Qualquer cidadão beneficia de saber como era o Estado Novo ou de conhecer as teses de Kant e de Platão ou de perceber o que por cá andou a fazer o Rousseau.

Pensar é uma ferramenta essencial à vida. Ou, pelo menos, devia ser. E era isso que as universidades deviam fazer: dar instrumentos a cidadãos que lhes permitissem avaliar o mundo e tomar decisões com base no conhecimento. Não vale a pena fazer do Ensino Superior um espaço de “aquisição de competências” e isso é ainda mais verdade num mundo em acelerada mutação. As tecnologias do momento mudam, os eixos do pensamento não: são coordenadas vitais. Qualquer universitário devia ter uma cultura sólida de Literatura, História e Filosofia, para lá de todas as competências mais específicas, em relação às quais o mais certo é vir a precisar de formação ao longo da vida.

O que é mais extraordinário é que, ao mesmo tempo que se desiste de usar o Ensino Superior para criar uma elite pensante, com as universidades curvadas perante o peso das cadeiras financiadas por empresas com agendas ideológicas, volta o discurso bafiento do Ensino Superior como “privilégio”. Aquilo que a democracia apresentou como um direito volta agora a ser uma regalia reservada aos que podem pagá-la.

Os dados, mais uma vez os dados, mostram como este ano voltou a cair o número de alunos carenciados a chegar ao Ensino Superior e há relatórios que garantem que o abandono escolar neste nível de ensino é tanto maior quanto mais baixa é a condição social. Não são só as propinas que pesam. É a habitação que esmaga as possibilidades de escolher um curso longe de casa. É o custo de vida que empurra alguns para trabalhos que depois não são compatíveis com os estudos. E, sim, também é esta ideia de uma sociedade que não valoriza o saber e de uma economia que não premeia o conhecimento. Para quê o investimento se o mais certo é andar o resto da vida a ganhar pouco mais de mil euros por mês?, perguntam-se alguns.

Enquanto isso, quem tem dinheiro na conta paga propinas milionárias de cursos pomposos com nomes em inglês, muitas vezes lecionados numa língua que faria o Shakespeare ranger os dentes e que me faz lembrar o latim de cordel de algumas personagens do Gil Vicente. É tudo uma farsa, mais ou menos engendrada pelo ChatGPT ou por alguém pago para escrever teses em modo takeaway, pronto a comer.

Andamos todos a comer gelados com a testa. Embevecidos com títulos académicos que não querem dizer nada. Embrutecidos pela ideia da eficácia e das “skills”. Iludidos com o mérito, que deixa sempre à porta os mais pobres. Estupidificados pela idolatria da tecnologia. Esmagados pelos mercados e a religião que nos impõem e não pode ser questionada. E enganados, acima de tudo, enganados por quem nos quer assim, cheios de canudos, mas dóceis, mestres e doutores, mas manipuláveis, altamente qualificados, mas completamente explorados.

A hora para partir ossos

Nas redes sociais corre há anos uma história que foi publicada na revista Forbes e se refere à famosa antropóloga norte-americana Margaret Mead. Reza a lenda que, quando questionada por um aluno sobre qual o mais antigo indício da civilização humana, respondera: “O registo fóssil de um fémur curado com 15 mil anos.” Estávamos na Idade do Gelo e para os homens primitivos, nómadas, um fémur partido significava a morte, uma presa fácil sem possibilidade de ele próprio caçar ou fugir. Um fémur curado significa que alguém cuidou daquele ser humano, teve empatia por alguém mais vulnerável, sentiu amor. “É aí que a civilização começa”, terá concluído Mead.

A História é comovente, mas provavelmente falsa, de acordo com outros antropólogos, que não encontraram provas de que Margaret Mead tenha dito tal coisa. Aliás, entre os académicos, parece estranhíssimo que seja esta uma prova da civilização humana, já que a Ciência nos tem mostrado o mesmo tipo de comportamento entre outros animais. O altruísmo não é uma característica meramente humana, os grandes primatas também a têm, por exemplo, mas é certo que não existe Humanidade sem altruísmo.

Os tempos que vivemos fazem-nos perder a fé na Humanidade. Tudo o que construímos após a II Guerra Mundial, os direitos humanos, o Estado social, o caminho para a igualdade entre homens e mulheres, tudo isso sobreviveu à ultraindividualista e gananciosa cultura yuppie dos anos 80, mas sobreviverá à “modernidade líquida” anunciada pelo filósofo Zygmunt Bauman e que parece estar a atingir o seu máximo esplendor na era das redes sociais?


O que poderá levar 150 mil pessoas às ruas de Londres para se manifestarem contra um grupo social altamente vulnerável como os imigrantes? O protesto aconteceu no sábado e foi liderado pelo ativista de extrema-direita Tommy Robinson e a multidão moveu-se contra o que diz ser o “apagamento e a substituição da cultura britânica”. Houve um contraprotesto (na foto), mas não juntou mais de cinco mil pessoas.

Para quem se esquece com frequência dos cinco milhões de portugueses que vivem no estrangeiro, convém relembrar que eles são imigrantes também e, obviamente, os que estão no Reino Unido ficam incluídos entre os visados nesta marcha de ódio. Estas pessoas – e muitas outras por toda a Inglaterra – não os querem lá, por muito que o primeiro-ministro Keir Starmer reafirme que não aceita que “cidadãos se sintam intimidados nas ruas por causa da sua origem ou da cor da sua pele”.

O protesto da direita radical teve outra particularidade. A polícia foi atacada por projéteis e houve vários agentes agredidos. Elon Musk, um imigrante a viver nos Estados Unidos da América que tinha apoiado a manifestação, avisou a partir da sua rede social: “A violência está a caminho.”

A violência sempre esteve entre nós. Característica de todo o reino animal, não é o que nos distingue enquanto Humanidade. No caso de Charlie Kirk, o ativista influencer de 31 anos assassinado a tiro na Universidade de Utah Valley, a violência é gasolina numa fogueira muito perigosa. Kirk fazia campanhas contra a vacinação e negava as alterações climáticas – era uma força da ultradireita americana na catequização dos mais jovens.

A direita radical portuguesa aparece agora em primeiro lugar numa sondagem, algo inédito no País. Ao aceitarem e interiorizarem um discurso que quase sempre é de ódio, os portugueses escolhem partir fémures, não curá-los. O altruísmo fica para outra hora, para um novo início da civilização.

Criminosos Seriais

Começam a ser condenados os chefes da grande quadrilha — perdão, orcrim, nome mais moderno que substitui o termo usado desde o século XIX derivado do quattuor latino talvez pela raridade de quadrilhas de só quatro bandidos. Bem, esse nome era realmente recente para designar coisa antiga. Nome por nome, havia bando, maffia, tríade, yakuza, cartel, bratva, comando, falange, cangaço, tudo reunião de bandidos — este derivado de bandire, banir, por bandito — ou de criminosus,a,um — quem fez um crime. Crime, por sua vez, vem de crimen,inis, o acusado. Vamos e venhamos, temos muita palavra para uma coisa muito frequente, que é a violação da lei. Depois de Beccaria, lei penal, pois separou-se um ramo do direito para explicitar o que é sujeito a punição pelo Estado, o que é agressão do indivíduo à sociedade.

Retomo: foram condenados os chefes da grande organização criminosa que se formou em 2018, por iniciativa do general Vilas Boas, que cooptou como chefe do bando o famigerado Bolsonaro, velho criminoso que conseguia escapar de todas as punições pela sua capacidade de se metamorfosear de vilão em vítima. A organização tinha por objetivo implantar no Brasil uma ditadura fascista. O primeiro não tinha condições de saúde para ocupar ele mesmo a chefia do bando, mas não deveria ter sido omitido no inquérito da Polícia Federal: sua participação fica clara em inúmeros atos, inclusive na presença de sua mulher na concentração do Forte Apache, porta voz e escudo contra a ação policial, mas, sobretudo, pela palavra do genocida ao agradecer sua eleição a ele e dizer que sua “conversa ficará entre nós”.


Com estas condenações, se enfraquece a quadrilha, mas engana-se quem crê que ela está extinta ou controlada. Um dado recente foi a necessidade de se fazer um novo inquérito para investigar a coação no curso do processo, coação feita inclusive com o uso de traição — ao pedir a colaboração de governo estrangeiro — e com a ocupação da Câmara dos Deputados e do Senado Federal. Já é evidente, no inquérito aberto, que o líder continua sendo o mesmo, com papéis relevantes para o perigoso elemento Silas Malafaia, para Eduardo Bananinha, Arthur Lyra, Sóstenes Cavalcanti, Rogério Marinho e uma corja de delinquentes-parlamentares, além do experiente e ativo grupo de operadores de fake-news, objeto de um terceiro inquérito — o mais antigo — ainda inconcluso.

Do mesmo modo com que se faz no combate a organizações criminosas ordinárias que operam drogas etc., a orcrim que opera política tem que ter seus mecanismos podados: as fontes financiadoras, a comunicação e suas ligações com laranjas inseridos nas mais diversas posições da sociedade. Os presídios de segurança máxima foram feitos para essas eventualidades dos grandes e perigosos chefes e principais sequazes. É para onde, agora, indubitavelmente, devem ir os recém-condenados.

Durante o julgamento, os ministros juízes fizeram questão de ressalvar que não falavam das corporações em si, mas de elementos nelas inseridos, manifestando grande admiração pelas forças armadas etc. Infelizmente algumas falhas estruturais entregaram essas corporações a criminosos, de maneira que a exceção não é quem nelas é criminoso, mas quem nelas não é criminoso.

A opção dos militares brasileiros pelo crime é antiga. Luís Alves de Lima e Silva instituiu a prática da “pacificação”, em que são executados todos os adversários considerados perigosos e, depois, se concede anistia para os crimes cometidos pelos mais fortes. Deste tipo foi a última grande anistia brasileira, a da Lei 6.683/1979, excluía os condenados pelos instrumentos de exceção, mas procurava abrigar os torturadores et caterva — na realidade autores de crimes contra a humanidade, não anistiáveis e imprescritíveis. Devemos fugir das pacificações como o diabo da cruz.

O caso da política é similar. Desde o império até nossos dias a política teve a participação de um número elevado de bandidos. Corrupção e violência andaram a par e passo. Mas elas não são inevitáveis. A maior parte do tempo houve maioria ou minoria significativa que detestava os dois tipos de crime e procurou combatê-los. Afonso Arinos assinalou que o sistema eleitoral brasileiro levaria cada vez mais à eleição de parlamentares pelos interesses corporativos e/ou pessoais. Foi o que aconteceu, até que esses interesses dominaram o parlamento.

Dos interesses às organizações políticas estabelecidas com a finalidade de cometer crimes, portanto orcrim, foi um pequeno passo. Raros partidos hoje não pertencem (não uso aspas, é literal) a uma ou umas poucas pessoas. É o caso do PL, propriedade do senhor Valdemar da Costa Neto. É um negócio que começa com a entrega anual aos partidos de cerca de 5 bilhões de reais — um quinto para o PL — para administração e campanha eleitoral, naturalmente em condições muito vantajosas. A rotina tem sido de quintuplicar o valor da proposta orçamentária. Passa depois pelas emendas, nome dado à apropriação de recursos destinados a ações essenciais da União pelos bandidos-parlamentares, que terão o valor de 84 bilhões, a ser dividido entre os donos dos diversos partidos. Não é de admirar que se tenha tantos partidos. Não é preciso lembrar a venda de emendas-jabutis e/ou projetos de lei, que rendem valores difíceis de imaginar.

O mais urgente é investigar e punir os crimes cometidos pelos membros da organização ainda chefiada diretamente por Bolsonaro, que não estão só no PL. Comece-se com os que, nos primeiros dias de agosto, cometeram o crime de tentativa de abolição violenta do Estado de Direito (impedindo e restringindo o funcionamento dos Poderes Legislativo e Judiciário). Não se espere ação da Câmara e do Senado, não só porque eles nada farão, mas porque a iniciativa da ação é evidentemente do Procurador Geral da República e o processo deve correr no Supremo Tribunal Federal (art. 53 § 1º; art. 102 Ib).

Trata-se de organização criminosa para cometer crimes em série. Serial killers do Estado de Direito. Só se resolve com prisão em regime fechado.

A História nos julgará

Não é fácil e muito menos consensual definir qual é o lado certo da História. Mas há algo de que não devemos duvidar: um dia, todos nós, sem exceção, seremos julgados pela História, seja ela grande ou pequena, com repercussão pública ou acanhadamente privada. Isso não se deve a algum sentido determinístico associado à ideia de destino traçado, mas antes à forma como, para o bem e para o mal, seremos recordados ou até simplesmente ignorados – que é também uma forma de a História ajustar contas com aqueles que, no seu tempo, pensaram ser importantes e relevantes… mas perderam rapidamente o seu “prazo de validade”.

O julgamento da História é também, como sabemos, muitas vezes cruel. E, sem que nada o fizesse prever, a imagem de alguém com uma carreira abnegada e irrepreensível em defesa do bem público pode, de repente, ficar manchada por causa de um erro de cálculo, por uma má decisão ou até uma asneira. Com consequências para sempre.

Ninguém sabe como é que, daqui a umas décadas, se vai olhar para este tempo em que vivemos, nomeadamente para a forma sistemática com que a população da Faixa de Gaza tem sido submetida, há quase dois anos, a uma carnificina prolongada e brutal. Sabemos, no entanto, como olhamos para todos aqueles que, na II Guerra Mundial, viraram as costas às denúncias do holocausto dos judeus, nos campos de extermínio da Europa oriental – e não os desculpamos. Também sabemos como encaramos aqueles que, na guerra da ex-Jugoslávia, ignoraram os sinais que poderiam ter evitado o massacre de Srebrenica – e não os perdoamos.


Mas seremos sempre assim tão severos? De todo. Só isso explica porque, ainda hoje, se aceite olhar para o morticínio do povo cambojano nos temíveis killing fields, como a obra de um ditador louco, ignorando a forma como esse mesmo Pol Pot foi apoiado e até defendido por americanos e chineses, apenas e só por razões geopolíticas da Guerra Fria.

O reconhecimento do Estado da Palestina pode não ter nenhum efeito prático no imediato, mas ajuda a definir o lado em que queremos ser recordados na História. E isso, só por si, já é um avanço moral considerável: significa que, pelo menos no tempo simbólico, sabemos escolher o caminho certo, sem estarmos presos aos meandros diplomáticos dos interesses do realismo político. É inconsequente? Não obriga o governo extremista de Israel a mudar os seus planos militares? Pode ser tudo verdade, mas há momentos em que já não se pode suportar o silêncio prolongado, o virar de costas, como se tudo aquilo que se tem passado em Gaza não tivesse a ver connosco, seres humanos.

A forma como este movimento diplomático se desenrolou, numa coordenação entre França, a Arábia Saudita e o Reino Unido, pode ser o indicar de um novo caminho para a diplomacia. E, acima de tudo, para um separar de águas que, mais do que nunca, é prioritário na política internacional: entre os países que, mesmo com todos os seus problemas e defeitos, continuam a respeitar a Carta das Nações Unidas e a lutar por ela, e outros, como Israel e os EUA, que cada vez mais se afundam numa deriva totalitária, sem respeito pelos outros e apenas preocupados consigo.

A memória não pode ser curta. Noutros tempos, também Portugal votou quase isolado nas Nações Unidas, ao arrepio do resto do mundo. E isso aconteceu não só nas lutas das décadas de 1960 e 1970 com as resoluções sobre o direito dos povos à autodeterminação, como nos votos a condenar o tenebroso regime do Apartheid, na África do Sul – que só terminou devido à ação persistente da comunidade internacional.

Neste estranho tempo em que vivemos, os isolados de Washington e Telavive têm os dedos nos botões do poder. E é inadmissível como, ao mesmo tempo que vai liquidando a democracia americana, Donald Trump ainda se dá ao luxo de abusar da sua qualidade de anfitrião para gozar nitidamente com as Nações Unidas. O modo como Washington impediu a presença física do líder da Autoridade Palestiniana no palco da Assembleia Geral das Nações Unidas – onde vai ser obrigado a discursar por vídeo –, enquanto abre os braços para um show de Benjamin Netanyahu no mesmo plenário deveria receber a condenação geral de todos os países. Seria, outra vez, uma forma de escolherem como querem ser julgados pela História.

Estratégia geotech

A Comissão Europeia anunciou, a 3 de setembro, uma multa recorde aplicada à Google por práticas anticoncorrenciais. O valor, por si, é impressionante – quase três mil milhões de euros. Mas será? E terá a capacidade de alterar comportamentos, da Google e demais big tech? Dificilmente.

Caso consideremos o free cash flow da Google, em 2024 (divulgado nos seus relatórios públicos), o valor da multa representa cerca de 17 dias de atividade. O mercado parece considerar a multa insignificante. As ações da Google foram transacionadas, no dia 2 de setembro a 211,35 dólares, e no dia 3 – dia do anúncio da multa – a 230,66 dólares. Nos dias seguintes, foram transacionadas sempre acima dos 230 dólares.

Igualmente, não existiu nenhuma notícia a pôr em causa o conselho de administração da Google, nem nenhum acionista de referência publicou a intenção de desinvestir.


Aliás, a empresa valorizou-se significativamente, quando, no dia 5 de setembro, um tribunal americano deliberou que a Google era uma empresa monopolista e tinha violado a lei, mas não obrigou a vender parte do negócio (no caso, o Google Chrome e Android), como era requerido pelo regulador.

Ou seja, o mercado não acredita que o Estado americano e a União Europeia estejam dispostos a aplicar a legislação anticoncorrência de forma a alterar o modelo de negócio monopolista que garante lucros astronómicos. Pelo menos, no curto prazo.

E o mercado não costuma enganar-se…

As big tech são, aliás, transparentes na sua estratégia. Apoiam Trump e a sua Administração. E esta apoia as big tech. Na negociação das tarifas, procurou um acordo com a Comissão Europeia para que esta revisse a legislação dos serviços digitais e Inteligência Artificial (nomeadamente, a responsabilidade por danos provocados) e ameaça com novas tarifas caso a União Europeia avance com um imposto sobre as plataformas digitais.

A Comissão Europeia afirma que não irá alterar a legislação, mas o imposto sobre serviços digitais, cujos trabalhos se iniciaram em 2018, ainda não foi criado. Um imposto de 5% sobre as receitas geradas no espaço europeu permitiria uma receita de 37,5 mil milhões de euros em 2026, ou seja, um valor equivalente a 19% do orçamento da União Europeia em 2025 (de acordo com um estudo publicado pelo CEPS). Atualmente, a carga fiscal das empresas digitais é de apenas 9,5%, quando a economia tradicional paga uma taxa média de 23,3%. Um imposto digital é essencial para garantir este equilíbrio e assegurar que o orçamento europeu (e o dos Estados-membros) tem capacidade para responder aos múltiplos desafios que enfrenta (da defesa à emergência climática).

As big tech sabem que o momento é crucial e o apoio político da Administração Trump, fundamental. É a Administração que controla a interposição e a eventual desistência de ações judiciais anticoncorrência – uma vez que estas são promovidas pelo Departamento de Justiça e pelo regulador, a Federal Trade Commission, cujos dirigentes são nomeados pelo Presidente Trump. Acresce que o apoio da Administração e, como tal, do Partido Republicano, impede a aprovação de qualquer alteração legislativa no regime da responsabilidade das plataformas pelos conteúdos distribuídos ou produzidos pelos LLM.

Aquando do lançamento das redes sociais e do YouTube, com o scrolling e o feed de conteúdos, o regulador poderia ter tomado uma de duas opções: fazer equivaler as plataformas digitais a uma companhia de telecomunicações e, como tal, serem imunes aos danos provocados pelos conteúdos disponíveis ou responsabilizar as plataformas pelos conteúdos distribuídos.

Nos EUA e na Europa optou-se pela imunidade e, como tal, captar a nossa atenção pelo máximo tempo possível – ainda que com conteúdos nocivos ao indivíduo e à sociedade – tornou-se a base do negócio. No processo, o algoritmo passou a dominar as nossas vidas, o espaço social e político.

Agora, que o legislador – ainda que timidamente – apresentou, na Europa, a primeira regulação (face à evidente degradação da democracia e aos efeitos nefastos na saúde mental), as big tech estão dispostas a tudo para impedir o fim do seu império.

Nunca foi tão importante a pressão social para que a Comissão Europeia não se demova e aplique a legislação de forma efetiva. Tal implica que este tema, nas suas várias dimensões, seja parte do debate público, discutido ativamente em vários fóruns e não apenas nos corredores políticos. Só assim será possível garantir que os nossos representantes políticos reconheçam a importância deste momento e atuem em consonância.

Na vida de Bolsonaro, o pior dos dias é qualquer dia

Não existia para Bolsonaro um dia pior do que a sexta-feira 18 de julho de 2025, em que foi posto pela primeira vez em prisão domiciliar. Embora ainda pudesse sair de casa entre as 6 horas da manhã e as 7 da noite, ele passou a fazê-lo algemado a uma inseparável tornozeleira eletrônica, suprema humilhação.

Até que chegou a segunda-feira, 4 de agosto. Por descumprir medidas cautelares da Justiça, Bolsonaro foi definitivamente proibido de acessar as redes sociais e de pôr os pés na rua, a não ser para atendimento médico e sob escolta policial. Ou então para comparecer ao seu julgamento. Não compareceu.


O domingo 7 de setembro até foi um bom dia para Bolsonaro. Na Avenida Paulista, 42 mil pessoas sob a batuta do pastor evangélico Silas Malafaia e do governador Tarcísio de Freitas pediram anistia para ele e xingaram o Supremo Tribunal Federal. Mas aí veio a quinta-feira 11 com a sua pesada condenação.

Surpresa alguma para Bolsonaro, salvo o tamanho da pena: 27 anos e três meses de prisão em regime fechado. Ao cumprir a pena integralmente, sem anistia ou indulto presidencial, ele ficará inelegível até quase os 80 anos de idade. Talvez mais porque ainda será julgado por outros crimes. Fim de linha.

Diante disso tudo, nada poderia acontecer de pior, mas aconteceu. No último domingo, depois de um intervalo de 20 anos, a esquerda ocupou as ruas de todas as capitais do país, e de dezenas de médias e pequenas cidades, e tomou da direita o discurso da luta contra a corrupção. Que dor sentiu Bolsonaro em ver aquilo.

Finalmente, o inimaginável: a falta de uma menção ao seu nome, por mais breve que fosse, no discurso de Donald Trump na abertura da Assembleia Geral da ONU. E, não bastasse, a menção simpática feita por Trump ao nome de Lula, com quem ele trocou um abraço pouco antes de ingressar no recinto.

Sequer um abraço Trump deu em Bolsonaro quando os dois se cruzaram no mesmo lugar em 2019. Humildemente, Bolsonaro esperou que Trump passasse por ele para dizer em voz alta e em inglês macarrônico: “Eu te amo”. Cercado de assessores, Trump não ouviu ou fingiu não ouvir. Se ouviu, não correspondeu.

Pois é, caros leitores. Rei morto, viva o novo Rei da direita a ser escolhido. Bolsonaro está sendo velado à distância por todos os que o exaltavam. Apesar de dependerem do seu voto para disputar as próximas eleições, eles temem herdar sua rejeição que só faz aumentar. Os efeitos da rejeição poderão ser mortais.

Trump era sua última esperança. Daqui para frente, todo dia será o pior deles para Bolsonaro.

Donald Trump: o presidente da decadência norte-americana

Durante os últimos 107 anos, desde o final da Primeira Guerra Mundial, os Estados Unidos têm ocupado uma posição central na política internacional, resultado de uma conjugação de vários fatores: capacidade de atrair capital e mão de obra, economia pujante, forte poderio militar e contínuo desenvolvimento tecnológico.

Ao longo de décadas, as principais personalidades das áreas do conhecimento foram atraídas pelos EUA, com algumas das melhores universidades do mundo. Mais, o país criou um sistema industrial com capacidade para desenvolver e comercializar inovações, mesmo que as surgidas em outras geografias, apesar de, economicamente, estar ancorado em energias sujas, como o petróleo e seus derivados e o carvão, matérias-primas que têm em abundância.

Acontece que o mundo, hoje, vive uma mudança de paradigma tecnológico, com a descarbonização da economia. Energias renováveis, utilização de produtos recicláveis e a redução do uso industrial do carvão são algumas das marcas do novo tempo.

As novas tecnologias voltadas para a preservação do meio ambiente dependem, contudo, na maior parte das vezes, de apoios públicos até atingirem a maturidade. Mesmo a Tesla, considerada uma das primeiras empresas de sucesso de automóveis elétricos, teve apoio de 465 milhões de dólares do Governo Obama, sem os quais não teria conseguido decolar.

Toda a mudança de paradigma tecnológico possibilita o surgimento de novos protagonistas tanto no âmbito empresarial quanto de regiões que antes produziam menor quantidade de riquezas. Nesse mundo novo, porém, estruturas consolidadas podem ficar para trás, devido a escolhas equivocadas.

Trump, dentro do que é geralmente chamado de política transnacional, aliou-se a setores que estão do lado contrário da inovação, para tentar frear as mudanças. Juntou-se às empresas de petróleo, ao setor do carvão, bombardeia as normas que exigem a redução da emissão dos gases de efeito estufa para favorecer os grupos que o financiam e ao seu grupo político.

Os Estados Unidos têm capital suficiente para, como têm realizado desde que se tornaram centrais no sistema econômico, comprar os direitos das inovações tecnológicas e atrair talentos, oferecendo-lhes melhores condições para o avanço de pesquisas, mas a opção tem sido por bombardear a política migratória.

Em termos de mão de obra, o Governo norte-americano ataca o setor da saúde, ao reduzir o financiamento público a programas como o Medicare e o Medicaid, o que deixa sem tratamento milhões de norte-americanos com menos recursos, além de desestimular e desinvestir em vacinas, provocando o ressurgimento de doenças que estavam praticamente erradicadas no país.

Na área da educação, a retirada de livros de bibliotecas e o dirigismo nos currículos das disciplinas, que passam a estar voltados para a louvação de uma visão deturpada da grandeza americana, ignoram, intencionalmente, a escravidão, o racismo e as desigualdades sociais e minam a criação de um sentido crítico, fundamental para o desenvolvimento de qualquer país.

Apenas duas áreas são estimuladas, mas que pouco contribuem para o desenvolvimento do país. A inteligência artificial, que o Governo Trump propõe que seja completamente desregulada, o que facilita a difusão de desinformação, e a cripto economia, que vive em uma zona escura da legalidade, valhacouto de ganhos do tráfico de drogas, da sonegação fiscal, do tráfico de pessoas e de outras atividades para as quais a transparência representa uma ameaça.

Não só: Trump censura aqueles que discordam de suas posições, destruindo os pilares daquela que ainda é considerada a maior democracia do mundo. Nem mesmo o humor está escapando dessa visão autocrática.

Dentro de alguns anos, ao ser feito o balanço da atual presidência norte-americana, os dados vão mostrar que Donald Trump foi administrador da transferência da centralidade econômica para outras geografias — mais provavelmente, por ter entregado a dianteira para a China, que diz combater
Jair Rattner

terça-feira, 23 de setembro de 2025

Da fixação infantil ao gozo contemporâneo

I

Um dos jargões mais marcantes para os millenials do Brasil é “Oh vida, oh céus, oh azar”. Assim se lamentava a hiena que forjou milhões de infâncias hoje adultizadas e feridas. Essa suposta dor encenada no desenho animado não pertencia somente à minha geração: o coitadismo sempre existiu, o vitimismo sempre existirá e o seu trabalho consiste em trocar de roupa. Aquiles se entregou ao próprio sofrimento e se negou a lutar, mesmo sabendo que os companheiros de batalha sofriam na carne uma Ilíada particular, morrendo um a um. Motivo? A perda da escrava Briseida. Raskólnikov matou a agiota que, para ele, representava a ponta mais visível da opressão que sofria, ampliando a barbárie ao sacrificar também a irmã da prestamista. A justificativa do protagonista para as machadadas assassinas está na superioridade que ele, equiparando-se a Napoleão, fantasiava em si mesmo e que o habilitaria para ultrapassar as leis e a moral (soa familiar?). Numa espécie de declaração judicial novelada, Humbert Humbert confessou a sua paixão por Lolita e narrou a própria pedofilia com tamanha autocondescendência que nós, empapados de machismo, chegamos a sentir que a criança realmente seduzia o seu tutor – pobre homem. Bentinho justificava os seus surtos de ciúme contra Capitu com base em sinais insípidos e ambíguos, mas, segundo ele, suficientes para comprovar uma traição. Essa certeza foi fervorosa ao ponto de ele não conseguir se relacionar com o filho que, tinha certeza, também era fruto da suposta deslealdade.


Entre estes e outros personagens há um elemento comum: todos esses homens – não por coincidência – justificam o seu furor homicida, a sua derrota, a sua perversidade ou a sua fraqueza não como resultado da própria intransigência, irresponsabilidade, cegueira ou sede de poder, mas sim como efeito de algo mobilizado fora do Eu. E assim se forjou o vitimismo no Ocidente: um mecanismo psíquico que, no plano coletivo, funcionou e funciona como um lastro da cultura, uma máquina da história, um estado ético e estético que formou homens e mulheres – na ficção e fora dela.

II

A postura vitimista nada mais é do que uma fixação infantil: numa determinada vivência inaugural, a criança sente que foi ferida injustamente e está certa de que tem direito a uma retratação do Outro (eis o que Bentinho repetiu ao longo da vida). Mas a culpa dessa outridade não existe necessariamente e, portanto, esse pedido de desculpas não chegará. Por isso, a criança se ressente contra o mundo e cresce presa à fantasia de matá-lo. Ao longo da existência, essa posição pode se consolidar numa certa interpretação da realidade cujo sintoma é a repetição infinita das sensações de inferioridade e injustiça. A cristalização da autopiedade na vida adulta só é possível porque, enquanto mecanismo de defesa, o vitimismo tem uma arquitetura objetal: depende do outro para se sustentar. O sujeito assim neurotizado acredita não ter a culpa de nada, mas os objetos externos, sim, são seus réus.

Considerando que todo mecanismo de defesa supõe um ganho secundário, o gozo da vítima está na possibilidade de agenciar o falso acolhimento (também objetal), a não responsabilização, a negação da própria incapacidade e – principalmente – a confirmação do sentimento de injustiça. Humbert Humbert o fez com leitores e leitoras ao construir a narrativa de tal maneira a ser percebido como o vulnerável e, portanto, vitimado da história (quando, na realidade, ao contrário da imagem de femme fatale que ele mesmo imprimiu na criança, ela era não a femme, mas a vítima fatal, e ele o algoz calculista e sem escrúpulos); Bentinho também empreendeu essa tentativa ao juntar uma série de ambiguidades que, em conjunto, desenhavam Capitu como traidora. E, para si mesmo, o conjunto dessas “provas” funcionava como uma espécie de consolo. Na Ilíada, são muitas as cenas em que, indireta e implicitamente, Aquiles sentia prazer em ser percebido como homem-sofredor-injustiçado-desonrado diante dos compatriotas que, por obediência, respeitaram a sua retirada suja de birra. Se observamos as representações do vitimismo na literatura da vida contemporânea, temos, por exemplo, as figuras do escritor que fala sobre a impossibilidade da escrita, os dramas da vida pequeno-burguesa, o vira-latismo intelectual ou as lamentações de uma branquitude esquizofrênica que perdeu o seu lugar de privilégio. Mais especificamente no campo das escritas de si, linha editorial em franca primavera, poucas vozes conseguem enunciar a própria história sem apelar para a vitimização. Esse gozo é irresistível, embora na literatura poucas e poucos consigam evitar a sua fatalidade.

III

Considerando que, como a psicanálise bem demonstra, tudo se repete no chão da cultura, os vitimismos ressurgem, hoje, com uma roupagem assustadora: no horizonte do turbotecnomachonazifascimo proposto por Márca Tiburi, pessoas postam o braço agulhado na cama da UTI, abrem uma live para chorar por um problema particular, publicam selfies em lágrimas, culpam (e às vezes matam) a mulher que decidiu romper a relação opressora, se posicionam como vítimas dos signos, do destino, de marte retrógrado – mas nunca de suas próprias ações. Uma observação: respeito e admiro todas as formas de crer (eu mesmo já estive e sigo adepto a muitas delas). O recorte aqui posto diz respeito à ação neurótica – automática e repetitiva – de manipular a montagem dos fatores externos para justificar um problema que poderia ser resolvido com mais responsabilidade e implicação pessoal. Atualizando a postura de Bentinho ou Humbert Humbert, muitas pessoas buscam ouvintes prontos para acreditar na versão enviesada de quem conta. Por sorte, não é difícil perceber que quem fala manipula e distorce em função de motivações conscientes e inconscientes. O gozo narcísico do vitimismo está no ombro amigo do mundo, mas também na facilidade da não confrontação com o próprio contraditório – e com a ação transformadora que ele exige.

No contexto coletivo, que é sempre político, a mobilização do imaginário coitadista está em todos os grupos do espectro, em maior ou menor intensidade. Para nós que estamos do lado de cá da tela, acompanhando os movimentos de aproximação e deriva entre partidos, só nos cabe a pergunta que também devemos aplicar à leitura literária: quem diz o quê e com qual intenção? A postura vitimista de Bolsonaro encontra símiles em Trump, Milei, Bukele, Abascal, Le Pen, Orbán e tantos outros que recitam o mesmo roteiro e interpretam uma mesma cena: manipular a lei democrática a favor de interesses antidemocráticos. É o puro cinismo que não se viu, por exemplo, quando prenderam Lula. Embora movido por uma paixão autocomplacente vez ou outra, ele não enviou os seus filhos à Rússia ou à China para articular chantagens econômicas contra o Brasil. No caso de Dilma Rousseff, pese a sua tão criticada inabilidade para o diálogo, o coitadismo de Estado não foi em nenhum momento a postura da ex-Presidenta. O que ela fez não foi falar de si, do que sofreu ou do quanto a política foi e é injusta com ela. Sem personalizar as ações, discursos e debates, Dilma optou por chamar a atenção para as manchas na História brasileira, para a gravidade do retorno a uma autocracia militar, para o perigo da saúde democrática. Quando alguém disser que políticos são todos iguais, é importante lembrar o grau de vitimismo agenciado e enunciado (ou não) por cada um.

Infelizmente, o capital político se fortalece com a mobilização bem-intencionada dos afetos das massas e com a confusão – arquitetada – entre vítima e herói. Daí surgem os falsos mártires. Enquanto a dinâmica do vitimismo individual tem como base a inferioridade não elaborada e a consequente queixa projetiva, no campo coletivo as figuras políticas se entendem superiores, mas aproveitam as facadas na barriga e os tiros na orelha para fingir uma fragilidade heroica. Com isso, alcançam os afetos individuais para, no final, transformá-los em votos.

Se a vitimização produzisse energia, seríamos um planeta autossuficiente para sempre. Mas não. Pelo contrário, o que o coitadismo faz é sugar o vigor de todos nós e, no campo coletivo, esculpir messias “pobrezinhos”.