É neste contexto que se impõe a necessidade de uma ação internacional direta: flotilhas humanitárias escoltadas por estruturas legítimas de proteção, capazes de abrir corredores para levar pão, remédios, água potável e esperança a uma população sitiada. Não é ingerência. Não é afronta à soberania. É solidariedade prática, é direito universal à vida. O “nunca mais” que ecoou após Auschwitz não pode morrer em Gaza.
Mas a luta não se encerra na Faixa sitiada. O que se vê no Oriente Médio e na Palestina revela as fissuras mais profundas de um sistema internacional em disputa. O Ocidente, liderado pelos Estados Unidos, insiste em bombardear, sancionar e subjugar povos inteiros em nome de uma democracia esvaziada de conteúdo. Já os novos polos emergentes, reunidos nos BRICS, prometem uma alternativa. Mas que alternativa é essa?
O Irã, parte desse bloco, ergue-se como voz contra o imperialismo ocidental, mas internamente mantém uma ordem que oprime mulheres, sufoca dissidências e reprime a juventude que clama por liberdade. Como falar de dignidade global se metade de sua população vive sob um regime de vigilância e punição moral?
A China, gigante econômico que hoje sustenta quase 20% do PIB global, apresenta-se como esperança de um mundo multipolar. Mas nos seus parques industriais floresce o “996”: jornadas de 9h às 21h, seis dias por semana. Uma rotina que arranca da carne e da mente dos trabalhadores toda energia vital. Uma ordem global fundada sobre a exaustão humana pode ser alternativa? Ou é apenas mais um espelho invertido do mesmo inferno capitalista?
A Índia, celebrada como democracia vibrante, convive com a permanência de castas, a exploração infantil e a escravidão moderna de milhões. Qual a legitimidade de um Sul que não protege os seus, mas perpetua servidões ancestrais?
E mesmo dentro do Brasil, que poderia liderar um caminho emancipatório, ainda se naturalizam desigualdades raciais, devastação ambiental e a exploração brutal da força de trabalho. O que temos a oferecer ao mundo se não somos capazes de proteger nossos próprios povos originários, negros, mulheres, trabalhadores e trabalhadoras?
O desafio, portanto, é este: não basta trocar o eixo de dominação. Uma nova ordem mundial que apenas substitui Washington por Pequim, ou Bruxelas por Teerã, não é alternativa, mas sim continuidade da barbárie. O que o planeta exige é uma ruptura ética: colocar no centro a vida, o descanso, a saúde mental, a igualdade de gênero, a justiça social, a infância protegida. Uma ordem fundada não no lucro ou na lógica de poder, mas na dignidade universal.
É aqui que a imagem das flotilhas humanitárias ganha força simbólica. São mais do que navios carregando pão e remédio: são embarcações que desafiam a lógica do império e do mercado, são a materialização de uma desobediência civil planetária. Se os Estados negam corredores, os povos abrirão caminhos pelo mar. Se a diplomacia falha, a solidariedade se fará em ondas.
O século XXI está sendo escrito diante de nossos olhos. Ou teremos coragem de enfrentar as contradições – inclusive as que habitam dentro dos nossos aliados estratégicos – ou seremos engolidos por uma multipolaridade cínica, que multiplica apenas a dor. O chamado é urgente: erguer flotilhas pela vida, pela dignidade, pela humanidade. Porque a neutralidade já não é possível. Ou navegamos rumo à esperança, ou afundaremos juntos na barbárie.
Flaviano Corrêa Cardoso

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