Acabava de irromper a pandemia de COVID-19 que, no Brasil, deixaria no seu rastro mais de 700 mil mortes. Nesse cenário, alguns especialistas buscavam fôlego para entender e responder ao avanço da política de ultradireita já então materializada como um novo modo de governar o Brasil. Desde 2019, as autoridades governamentais faziam diatribes sobre a urgência de abolir o gênero das políticas sociais e da pauta política.
Assim, quando muitas vozes ainda diziam que o ódio antigênero registrado em 2018 era mera retórica de campanha, foi necessário levar a sério a afirmação do ex-presidente Jair Bolsonaro no discurso de posse e em sua primeira intervenção na Assembleia Geral das Organizações das Nações Unidas, de que o combate ao gênero seria uma prioridade do seu governo.
Foi quando reunimos especialistas em gênero e sexualidade do Observatório de Sexualidade e Política (SPW) e do Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT+ da Universidade Federal de Minas Gerais (NUH/UFMG) para compreender como um governo arruinava, paulatinamente, concepções de políticas públicas de democracia sexual conquistadas em três décadas. O resultado desse estudo acaba de ser publicado sob o nome de Ruinologia: Uma Cartografia da Política Antigênero no Governo Bolsonaro (2019-2022).
Nossa surpresa foi que não se tratou de um simples desmonte de políticas públicas democráticas. Há uma ruína. O governo Bolsonaro operou uma “destruição produtiva”, desfigurando terminologias e ressignificando o próprio arcabouço conceitual e epistemológico dos direitos humanos. Tanto que dificilmente este e os próximos governos, mesmo que venham combater a ultradireita, dificilmente desmontarão o retrógrado legado. Temos de primeiro, reconhecer a eficiência desse desmonte.
O Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), sob a gestão de Damares Alves, hoje senadora, tornou-se o epicentro dessa estratégia. De 2019 a 2022, a ofensiva antigênero, antes restrita a mobilizações sociais, incrustou-se no aparato estatal, transmutando-se em uma “nova política de gênero” ultraconservadora e neoliberal.
Um dos paradoxos mais evidentes dessa gestão foi a retórica de “proteção” da população LGBT+, em contraste com o combate ferrenho à “ideologia de gênero”. Damares Alves e outros representantes do governo propagaram a ideia de que o Estado deveria “proteger e não promover”. Essa lógica, aparentemente conciliatória, permitiu a gradual descaracterização e desestruturação das políticas LGBT+, antes consolidadas.
A própria Diretoria de Promoção dos Direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, embora mantida, foi esvaziada e, por fim, renomeada como Departamento de Proteção de Direitos de Minorias Sociais e População em Situação de Risco. A inclusão da categoria “ideologia de gênero” nos canais de denúncia do ‘Disque 100’ como uma “violação de direitos” é um exemplo claro dessa infiltração ideológica no cerne da gramática estatal, transformando um instrumento de proteção em ferramenta de perseguição arbitrária de servidores públicos.
As “políticas familiares” foram outro pilar da ruína democrática. A criação da Secretaria Nacional da Família (SNF) com a premissa de que a “família”, no singular, é a instituição basilar a ser protegida, visava impor um modelo ideal de núcleo familiar. Programas como o “Reconecte” e “Famílias Fortes”, com orçamentos modestos, mas com grande apelo simbólico, buscavam tutelar a vida privada, disciplinando o uso de tecnologias digitais e orientando a “parentalidade positiva”. O objetivo era claro: sedimentar uma mobilização política conservadora nos níveis locais cujo eixo era o acionamento sistemático da família ou do fortalecimento familiar, entendido de maneira estreita como o vínculo entre genitores e sua prole.
A agenda familista do governo Bolsonaro esteve intrinsecamente ligada a um neoconservadorismo que se expressou, por exemplo, na defesa da abstinência sexual para jovens e na tentativa de impedir o aborto legal de uma criança vítima de violência sexual no Espírito Santo. Essas ações, muitas vezes brutais, eram embaladas por uma “diplomacia paralela” do MMFDH e do Ministério de Relações Exteriores, alinhando o Brasil a movimentos antigênero e antiaborto internacionais.
O legado é persistente. Embora o governo Bolsonaro tenha terminado em 2022, os rastros dessa “ideologia antigênero” permanecem insidiosamente incrustrados na gramática estatal. A inexplicável demora na publicação de portarias ministeriais para implementar políticas de assistência a pessoas trans, somada à persistência de lacunas e distorções nas definições de violações de direitos humanos em razão de gênero e sexualidade no atual Ministério de Direitos Humanos e Cidadania, são evidências de que esses legados ainda não foram devidamente debelados.
É fundamental que a sociedade civil, a academia e a imprensa permaneçam vigilantes. A tese de que “pautas dos costumes” dão força à ultradireita, muitas vezes utilizada para justificar a relutância em abordar “esses assuntos”, obscurece o óbvio: questões de gênero, sexualidade e aborto são nodais no projeto de mundo da ultradireita: um mundo desigual e regido pela liberdade autoritária. Driblar esses debates não os fará desaparecer. Ao contrário, estarão cada vez mais presentes no cotidiano político.
Marco Aurélio Máximo Prado

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