“As pessoas conseguem ser muito más”, diz a minha sobrinha, 9 anos acabados de fazer, enquanto falamos sobre as notícias acerca de um grupo de pessoas que deram à costa no Algarve e lhe explico que elas terão de abandonar o País. Quando se tem 9 anos, o difícil é entender por que motivo não se acolhem aqueles que arriscaram a vida, dias a fio numa casca de noz, a tentar fugir da miséria. “As pessoas são burras”, acrescenta a minha filha, de 7 anos, indignada, enquanto explica à prima que quem vem para cá só está à procura de um trabalho e de viver num país em paz. “Se houvesse uma guerra, eu também fugia”, diz ela, olhando para o mar, talvez à procura de vestígios de outras embarcações que pudesse salvar. Faz uma pausa. E começa a explicar à prima que as bolas de Berlim que acabaram de me pedir na praia foram trazidas para Portugal por judeus que fugiam à guerra “e a um mau mesmo muito mau”.
Suponho que a empatia seja uma coisa que se gasta. Parecemos bastante dotados dela quando ainda não chegámos à puberdade e entendemos facilmente a ideia de ajudar quem precisa. Depois, começamos a ficar enterrados dentro do próprio umbigo, assustados com um conceito que as crianças não dominam: a escassez. Quanto mais nos convencemos de que o que existe é limitado, mais ameaçadora nos parece a ideia de partilhar o que temos. A questão é que existe, muitas vezes, uma manipulação da ideia de escassez: apresentam-nos como escassos bens que poderíamos facilmente partilhar, ao mesmo tempo que se ocultam as possibilidades multiplicadoras que têm certas ações. Uma fila de gente com turbante à porta de um Centro de Saúde no litoral alentejano parece uma ameaça à possibilidade de ter uma consulta, num local onde há cada vez menos médicos. Uma fila dessa mesma gente no campo, apanhando fruta sob um sol escaldante, pelo contrário, não parece suscitar qualquer ideia sobre os benefícios desse trabalho. Porquê? Porque, muito provavelmente, os benefícios desse trabalho sofrido e mal pago vão quase exclusivamente para os bolsos de quem explora aqueles campos agrícolas e não é obrigado a dar nada (ou quase nada) em troca à população que ali vive.
Quando um produtor de vinho desespera porque não consegue contratar pessoal para a vindima, apesar de oferecer boas condições, oiço-o a explicar-me que os jovens lá da terra se recusam a trabalhar e nem lhe atendem o telefone. São portugueses e não vivem de outro subsídio que não seja a mesada paga pelos pais, que lhes garantem telefones topo de gama e um verão sem responsabilidades, entre os ecrãs e as praias fluviais da zona. Os mesmos pais que se incomodam com a presença cada vez mais visível de africanos e indostânicos nas ruas da terra, onde nunca antes se tinha visto gente tão escura, vindos precisamente para aceitar os trabalhos que os seus filhos recusam.
Eduardo Lourenço dizia que “não trabalhar foi sempre, em Portugal, sinal de nobreza”, o trabalho, dizia, era “para o preto”. Por muito que os portugueses se tenham matado sempre a trabalhar, as elites nacionais fugiam como o Diabo da cruz da ética protestante do trabalho. Hoje, essa fuga ao trabalho é incutida nos filhos pelas classes a quem o 25 de Abril deu instrumentos de mobilidade social. Aqueles que sabem o que era amargar no campo, nem que seja pela memória da avó de lenço na cabeça e pés descalços, querem poupar os filhos a isso. É perfeitamente compreensível. Só não se entende quem, afinal, virá fazer o trabalho, se não o queremos feito por nós nem pelos nossos filhos e também não queremos que cá venham os de fora fazê-lo.
“Viva, Espanha! Mas viva, Espanha, aqui. Não é viva, Espanha, nos vossos escritórios com ar condicionado”, diz um imigrante negro, no meio de um campo, num vídeo que circula nas redes sociais, no qual faz um discurso em castelhano sobre como todos os dias, debaixo de um sol impiedoso, faz a sua parte por Espanha, o país onde o partido de extrema-direita, Vox, diz querer expulsar oito milhões de imigrantes.
“Vocês não vão expulsar ninguém, ninguém. E muito menos oito milhões de pessoas. Primeiro, porque se expulsam tanta gente, no final vai ter de trabalhar até o Abascal. E, segundo, porque não representam os imigrantes. Representam os empresários que os exploram. E se os empresários exploradores perceberem o que querem fazer, até vos comem”, reagiu Gabriel Rufián, da Esquerda Republicana da Catalunha, numa intervenção nas Cortes Espanholas, que se tornou viral e arrancou gargalhadas no plenário quando sugeriu que até Santiago Abascal, o líder do Vox, poderia ter de trabalhar no duro, caso se fossem embora todos aqueles que hoje sustentam a economia espanhola, aceitando os trabalhos mais difíceis, os mais mal pagos e aqueles que são tão essenciais numa sociedade dependente de serviços e numa estrutura social que não sobrevive sem uma rede de cuidados pagos a idosos e crianças.
A ideia de que os que temem a grande substituição étnica deviam estar de enxada na mão nos campos é interessante. E não é só porque a sua falta de vontade de trabalhar nalguns setores faz com que seja essencial receber trabalhadores de outras paragens (e é bom lembrar como a nacionalista Giorgia Meloni se viu obrigada a abrir um programa para trazer 500 mil imigrantes não europeus para Itália) e também não é por um desejo qualquer de os ver castigados. É mesmo porque é urgente resgatar a empatia.
Há razões para achar que essa não será forçosamente uma batalha perdida. Em 2024, o jornalista François Ruffin, sob a lente do realizador Gilles Perret, anunciou um projeto de “reintegração social dos ricos”. O projeto deu origem a um documentário chamado Au Boulot! (em português seria “Ao trabalho!”), que nasceu de um desafio feito a uma jovem loura privilegiada, comentadora televisiva, conhecida por andar pelos estúdios da televisão francesa a debitar ataques aos “vagabundos, aos subsídio-dependentes, aos preguiçosos” e por se indignar por o dinheiro dos seus impostos ser usado para sustentar “a mediocridade dos que não querem fazer nada”. Seria Sarah Saldmann capaz de viver a vida dos que ganham o salário mínimo em França?
Ainda não consegui ver o filme, mas os excertos que encontrei na internet são poderosos. Sarah Saldmann, que começa por aparecer em restaurantes chiques e lojas de luxo, calça luvas e atira-se ao trabalho. Numa quinta a cuidar de animais, nas limpezas esfregando sanitas, num lar cuidando dos idosos, nas obras, num restaurante. “Vais conseguir continuar a falar na televisão sobre subsidiodependentes sem te lembrares da cara da Nathalie?”, pergunta-lhe Ruffin, num dos vários momentos em que a comentadora se confronta com as histórias de vida daqueles a quem foi impossível continuar a estudar ou, tendo estudado, não conseguiram empregos que não os que lhes rendem o salário mínimo francês. Aos poucos, Sarah vai perdendo a ideia de que “temos a vida que escolhemos ter”.
Há uma transformação redentora quase tão absoluta como aquela que víamos nos filmes pirosos de Hollywood aos fins de semana no Chiado Terrace da SIC. A comentadora privilegiada e cheia de ideias feitas sobre as classes trabalhadoras ganha empatia. Consegue finalmente perceber que nem todos temos as mesmas hipóteses na vida, que nem todos partimos do mesmo lugar e que o esforço e o mérito não são a garantia de um sucesso que possa medir-se em euros.
Não podendo andar a distribuir enxadas ou luvas de trabalho entre os apoiantes dos partidos que querem criminalizar a imigração, talvez seja importante voltar à ideia do trabalho como fonte de dignidade. Não o dinheiro. Não o sucesso. O trabalho. Aquilo que se consegue fazer usando as mãos e a cabeça. Aquilo que produz alguma coisa.

Nenhum comentário:
Postar um comentário