Lemkin, de formação jurídica e linguística, buscava criar uma categoria jurídico-penal para preencher uma lacuna injustificável nas leis internacionais (e também nacionais), propondo assim a tipificação de uma conduta que, no dizer de Winston Churchill, constituía “um crime sem nome”, ao se referir aos primeiros dias do Holocausto na Europa.
Mais do que isso, os estudos sobre os trabalhos desenvolvidos e, ainda que não publicados, dos documentos deixados por Lemkin, que morreu em 28 de agosto de 1959, na cidade de Nova York, onde passou a residir após fugir da Europa tomada pelo nazifascismo (Lemkin era judeu), demonstram que foi objetivo do jurista criar um termo forte e marcante, que chamasse a atenção pela gravidade do delito (a respeito, a obra de Samantha Power intitulada Genocídio – A Retórica Americana em Questão, pela Editora Companhia das Letras, 2004).
Assim, o crime de genocídio surge de uma concepção jurídica inserida na seara do Direito Penal e, ainda mais especificamente, do Direito Penal Internacional e atualmente projetada pela Convenção Para Prevenção e Repressão ao Crime de Genocídio, de 9 de dezembro de 1948 e pelo Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, de 1998, além de previsto por leis criminais domésticas, como a lei brasileira nº 2.889, de 1º de outubro de 1956. É essa sua origem e a base a partir da qual foram delineados pelo jurista os aspectos estruturais do tipo penal, seus elementos objetivo e subjetivo (mens rea).
Lemkin, a partir de sua percepção privilegiada sobre as intersecções que caracterizam o extermínio de um povo, propôs uma versão mais ampla do que aquela afinal abraçada pelo Direito Penal Internacional a partir das normas acima mencionadas, uma vez que o período pós-Segunda Guerra Mundial foi marcado pelas determinações políticas impostas pelas duas superpotências que, à época, despontaram: a União Soviética Stalinista e os Estados Unidos da América, sob Harry S. Truman. A visão do jurista não cabia nas novas equações geopolíticas dominantes. Por força de tal contexto, as ideias de genocídios causados por motivações políticas ou, ainda, o etnocídio (ou genocídio cultural), foram excluídos.
Para Raphael Lemkin: o crime de genocídio apresenta uma acepção mais ampla, isto é, não significa estritamente a destruição imediata de uma nação, exceto quando realizado por meio do assassinato em massa de todos os membros de um país. Em vez disso, deve ser entendido como um plano coordenado de diferentes ações cujo objetivo é a destruição dos fundamentos essenciais da vida de grupos de cidadãos, com o objetivo de aniquilar os próprios grupos1.
Aliás, o jurista concebeu em sua clássica obra distintas técnicas para consecução de um genocídio, ressaltando que este crime, na verdade, representa um ataque concentrado e coordenado contra todos os elementos do “nacionalismo” (ao nosso ver o termo “nacionalismo” deve ser aqui interpretado como os referenciais que compõem uma nação, tais como língua, cultura, costumes, crença, composição étnico-racial, bases relacionais etc.).
Assim, cuidamos, pela visão ‘lemkiana’, de elementos objetivos que vão além da existência física do grupo Aliás, o próprio pensador polonês alertou no sentido da visão restrita e limitada sobre o crime de genocídio ou do etnocídio circunscrita ao imediato extermínio de uma nação, uma vez que a figura penal proposta também indicaria o plano coordenado de distintas ações em direção à destruição das bases essenciais da vida de grupos nacionais, visando a sua aniquilação.
Sobre tal proposição, Martin Shaw, Professor Pesquisador no Institut Barcelona d’Estudis Internacionals (IBEI) e Professor em Relações Internacionais e Direitos Humanos na Universidade de Roehampton, defende que um estudo sério sobre o crime de genocídio impõe a recuperação às lições de Raphael Lemkin, uma vez que muitos autores posteriores atribuem à Convenção de 1948 o conceito de genocídio, afastando-se das proposições lemkianas mais amplas, que o concebiam não apenas como uma conduta fruto da violência organizada mas, ainda, também como a destruição econômica e a perseguição; a ameaça à existência de uma coletividade e à própria ordem social.
Lemkin defendeu, originariamente, que o genocídio implica no conjunto de ações encetadas com o escopo de eliminar, por meio de um planejamento coordenado, as bases essenciais da vida de grupos nacionais. Seria, assim, um ataque voltado às searas física, econômica, biológica, política, social, cultural (etnocídio), religiosa e, ainda, à moralidade de um povo.
Para Shaw, o crime de genocídio constitui exatamente um processo exaustivo pelo qual se ataca e se destrói de forma ampla o modo de vida e as instituições do grupo humano oprimido. Logo, uma perspectiva mais estendida, próxima aos cânones lemkianos.
Trata-se da corrente “sociológica” do genocídio que defende certa reaproximação interpretativa com o modelo original proposto por Raphael Lemkin em 1944, não observado, por razões especialmente políticas, pelo Direito Internacional quando da aprovação da Convenção Para Prevenção e Repressão ao Crime de Genocídio, de 1948, mais restrita em sua concepção e definição de genocídio, assim como também pelo Estatuto de Roma, de 1998.
Nomes como Leo Kuper, o genocide scholar precursor; o próprio Martin Shaw; Daniel Feierstein, Dirk Moses, Helen Fein, Vahakn Dadrian, Tony Barta, Adam Jones dentre outros, inclusive autores e autoras brasileiros/as, como Heitor de Andrade Carvalho Loureiro, Mariana Boujikian e Nathalia Hovsepian (genocide scholars da nova geração e especialistas na temática do genocídio do povo armênio), representam parte da mencionada visão mais ampla e sociológica do genocídio.
A jurisprudência internacional vem também alargando tal conceito, porém com os cuidados necessários para não violar os princípios do Direito Penal, especialmente o Princípio da Legalidade. Afinal, o Direito Penal é, historicamente, instrumento ao qual recorrem regimes autoritários como arma de perseguição política diante de tipos penais abertos. A via assim percorrida pelas Cortes internacionais vem consagrando novos referenciais interpretativos para o reconhecimento do crime de genocídio. A própria ONU, na sua origem, propunha uma tipificação mais ampla para a caracterização do crime.
Assim, no ano de 1946, as Nações Unidas aprovaram Res. n° 96/1946 pela qual estabelecia a necessidade de que os Estados-membros aprovassem uma convenção para prevenir e reprimir o crime de genocídio. Para tanto, definiu em seu texto tal crime internacional como “a negação do direito à existência de grupos humanos inteiros, que impõe perdas no plano cultural e de outras contribuições dos grupos vitimados, cometido pela destruição total ou parcial de grupos raciais, religiosos, políticos e outros, além de quanto aos seus autores, cúmplices, sejam eles cometidos por agentes públicos, privados ou por estadistas”.
Como se nota, a proposição das Nações Unidas em 1946 para a tipificação do crime de genocídio era ampla, sugerindo a inserção das perdas no plano cultural, além da caracterização do crime por razões políticas “e outros”, logo, um tipo legal consideravelmente mais aberto, menos restrito.
Entretanto, em 9 de dezembro de 1948, a versão final o crime de genocídio aprovada restringiu demasiadamente a tipificação do genocídio, sob os seguintes termos: “entende-se por genocídio qualquer dos seguintes atos, cometidos com a intenção de destruir no todo ou em parte, um grupo nacional étnico, racial ou religioso, como tal: matar membros do grupo; causar lesão grave à integridade física ou mental de membros do grupo; submeter intencionalmente o grupo a condição de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial; adotar medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio de grupo; efetuar a transferência forçada de crianças do grupo para outro grupo”.
O Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional (1998) manteve as restrições acima comentadas ao definir o crime de genocídio em seu artigo 6º. E, como se nota, ao menos dois fatores restringem a incidência de tais normas internacionais: a) não foram previstas as hipóteses de genocídio praticado por razões políticas e culturais; e, b) como elemento subjetivo, somente pode ser reconhecido o crime de genocídio quando provada a presença do chamado dolo específico, ou seja, a demonstração inequívoca de que o único escopo do perpetrador é erradicar a existência coletiva de um grupo humano.
Em relação ao primeiro ponto, as críticas afirmam, em síntese, que a definição dos critérios “nacionalidade”, “religião”, “raça” e “etnia” como únicos fatores para caracterização do crime de genocídio, hierarquiza ou categoriza os seres-humanos. Assim, por exemplo, por qual motivo a orientação sexual não poderia ser inserida no citado rol? Recorde-se que a população LGBTQIAP+, uma das mais violentadas em seus direitos em diversos países e sob distintos regimes políticos e culturas, foi também perseguida, enclausurada e assassinada nos campos de concentração nazistas.
A exigência de prova da intenção constitui o principal foco das críticas quanto à suposta ineficácia das normas destinadas à prevenção e repressão do genocídio. Afinal, como demonstrar com segurança aquilo que se passa na mente do perpetrador? A Convenção de 1948, ao estabelecer a obrigatoriedade da prova específica da intenção em se cometer o extermínio (dolo específico), elemento subjetivo inspirado na experiência histórica do Holocausto, demasiadamente documentado pelos próprios nazistas perpetradores, tornou-se norma de difícil aplicabilidade. “Provar” perante uma Corte Internacional aspectos de ordem psicológica, como a intenção específica do extermínio de um grupo humano, é normalmente uma tarefa muito difícil.
Normalmente os debates judiciais ocorrem sobre a necessidade da prova do dolo específico, como ocorreu no caso Al Bashir (The Prosecutor v. Omar Hassan Ahmad Al Bashir) no âmbito do Tribunal Penal Internacional.
A jurisprudência dos tribunais internacionais vem estabelecendo, pouco a pouco, a possibilidade da prova indireta da intenção em se cometer o genocídio por meio da consideração a alguns elementos circunstanciais: a violência extrema; a extensão do número de vítimas; a sistematização das ações e dinâmicas e a escala sistemática dos crimes, o padrão de violência seletiva etc.
A prova indireta da intenção genocida, quando não possível a prova direta do dolo, já foi reconhecida pelo Tribunal Criminal Internacional Para Ruanda – ICTR (Anzinga. Nahimara et al. Appeal Judgment, paragraph 524, dentre outros), assim como pela Corte Internacional de Justiça, no caso Croácia vs. Sérvia, em voto vencido do Juiz brasileiro Antonio Augusto Cançado Trindade.
Outros casos conhecidos também reconheceram a possibilidade da prova indireta da intenção genocida, como o caso Prosecutor v. Krstić no Tribunal Criminal Internacional para a ex-Iugoslávia. (ITCY).
De fato, trata-se de um aspecto dentre os que mais geram debates entre os estudiosos do genocídio. Ainda que se possa criticar as restrições consagradas pelo Direito Internacional, é importante que sejam considerados, de outro lado, os seguintes fatores: o genocídio é uma categoria jurídica; foi concebido como um “crime” e, portanto, ainda que seja atualmente um instituto presente nas discussões entre sociólogos, historiadores, antropólogos etc., quando se trata de casos concretos que chegam aos tribunais, o desafio maior gira em torno da prova da presença dos requisitos legais impostos pelo tipo penal vigente.
O alargamento dos elementos que tipificam o genocídio, de outro lado, podem gerar riscos aos princípios da legalidade, da anterioridade da lei penal e ao princípio da ampla defesa com todos os meios a ela inerentes. A ampliação na interpretação dos seus elementos caracterizadores requer cuidados, como já destacado acima, sob pena de comprometer o princípio do direito ao julgamento justo cunhado pelos julgamentos de Nuremberg.
Não é raro, inclusive, que contextos próprios de crimes de guerra e crimes contra a humanidade sejam equivocadamente interpretados como genocídio. Contudo, aqueles não exigem a prova do dolo específico. Aliás, para William Schabas, um dos grandes especialistas atualmente reconhecido e Professor da Middlesex University London, o crime contra a humanidade é a versão expandida do crime de genocídio.
Os requisitos atualmente necessários para a sua caracterização geram dificuldades quando considerados os genocídios cujas dinâmicas não correspondem exatamente aos modelos considerados pelo Direito Internacional vigente. É o caso do extermínio dos povos indígenas nas Américas, inclusive no Brasil. Os processos e os veículos desenvolvidos na eliminação das culturas autóctones não necessariamente correspondem, em alguns aspectos, à visão convencional internacional (por exemplo, ONU e TPI), ainda que eliminem a existência das bases essenciais para a existência de tais povos.
Seria, assim, importante, que o crime de genocídio tivesse por seu elemento tipificador também os aspectos essenciais e relacionais de suas culturas. O contexto cosmológico dos povos indígenas e as referências, que, por vezes, condicionam suas existências e identidades, devem ser considerados para que se possa identificar o cometimento do genocídio.
Se o genocídio destrói os corpos, o etnocídio elimina o espírito livre; ambos condicionam a existência coletiva. No genocídio o extermínio é meio; o fim é erradicar a identidade.

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