Na política, a lei tem espaço para anistia e burla. No futebol, a política é vencer seguindo as regras que legitimam vitória, empate ou derrota, porque valem para nós e — eis a novidade — para eles!
O futebol se mundializou pela capacidade de produzir igualdade democrática, ao lado da experiência de vitória e excelência em competições. Nada mais gratificante para sociedades colonizadas, marcadas pela autodepreciação, do que dar “um banho de bola” nos branquelos invencíveis. O roubo do futebol pelo Brasil e por outros povos periféricos é uma façanha revolucionária justamente porque não é definitiva e porque nega o determinismo.
Se as leis legitimavam a escravidão e sustentavam um sistema político com notável vocação para tirar vantagem de tudo, as do esporte e do futebol são universais. Valem para o campeão e para o lanterninha. Valem para os craques e para os “pernas de pau”. Essa é a grande lição do esporte em nossa sociedade elitista e aristocrática, marcada pela possibilidade de jogar nos dois times...
A aceitação de leis fixas torna o futebol um milagre para os tidos como “pobres” e para quem tem sofrido a permanente desonestidade dos governos. Vencer ou ganhar seguindo regras revela talento e trabalho, coisas raras na vida política. No futebol, não há como anular ou anistiar jogadores ou times desonestos e derrotados. Eis um contraste que, por si só, explica a paixão pelo futebol.
É essa substância democrática que atrai na esfera esportiva. Foi essa experiência com a liberdade e a igualdade que promoveu a forte reação de intelectuais que não suportavam mulheres torcendo livremente, ao lado da igualdade que associou brancos riquinhos a seus ex-escravos nos verdes campos da justiça social embutida no futebol!
Não tenho espaço para seguir, mas saliento que o futebol é hoje um tema acadêmico legítimo. Numa época em que ele, como o carnaval, era considerado o “ópio do povo” e assunto para reacionários, como Nélson Rodrigues, promovi o seu estudo no Museu Nacional. Ali, orientei Simoni Guedes e tive a satisfação de ler os ensaios sobre futebol de José Sérgio Leite Lopes, bem como do saudoso Afrânio Garcia, organizador de um pioneiro encontro para discuti-lo em Paris.
Recusando o reducionismo, examinei como o Brasil jogava futebol e como o futebol jogava o Brasil. Esse Brasil que, pelo menos no futebol, era obrigado a seguir as suas regras, sob pena de assassinar o jogo.
Aprofundei tal postura no livro “A bola corre mais que os homens”, publicado em 2006. Ensaio hoje vencido pela gloriosa fúria analítica de Antonio Risério em seu “Pelé: o negão planetário”. Um estudo importante porque, como o ensaio de Leite Lopes sobre Garrincha, concentra-se nos craques e introduz um campo burocratizado, o carisma. Aquele talento de “comer a bola” que os abençoados possuem. Donos desse dom — como, no Brasil, Ademir Menezes, Didi, Zico, Orlando, Nílton Santos, Garrincha ou Pelé — que representam o sumo do futebol em sua variante brasileira.
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