segunda-feira, 23 de junho de 2025

A primeira linha de 'combate'

Pertencendo à geração que nasceu na época da II Guerra Mundial, ou na sua imediata sequência, após a vitória do “mundo livre” sobre o nazi-fascismo, confesso nunca ter pensado viver um tempo em que se verificasse tamanha regressão em termos de humanismo, valores, democracia. Em termos de Direitos Humanos. Ou, por outras palavras, desrespeito pelos direitos e pela dignidade de pessoas e povos, violência e crueldade levadas ao limite, até contra inocentes indefesos, violação grave e constante de princípios básicos de honestidade intelectual, boa-fé, compreensão, tolerância.

Logo depois daquela vitória, em 1945, a criação da ONU, juntando todos os países do mundo para garantir a paz, tomar medidas sobre as grandes questões universais e ajudar ao desenvolvimento, foi uma grande conquista e representou uma grande esperança. Mas o cumprimento do Direito Internacional constituía pressuposto essencial para a prossecução do seu primeiro objetivo. E o desprezo pelas normas desse Direito foi sendo cada vez maior e mais grave, sem a ONU ter meios para o impedir ou sancionar.

E assim chegamos aonde chegamos. Não por acaso sendo Israel o país que na ONU ao longo dos anos mais decisões violou e recomendações incumpriu. Agora, o genocídio em Gaza e a proibição da ajuda humanitária aos que aí vão morrendo de fome, mormente crianças, são a mais trágica e expressiva imagem do que hoje se passa no mundo. Mas não a única, há outras, entre as quais a da invasão da Ucrânia pela Rússia.


Entretanto, a outro nível, só político, sem “extermínio” ou conflito armado, a imagem mais expressiva deste dramático tempo é Donald Trump: um misto explosivo de sede/ostentação de poder, ausência de formação cívica/cultural e de espírito democrático. De par com outras características, tudo fazendo dele, à frente da maior potência planetária, uma ameaça para o mundo.

E também Trump não é único. Recorde-se, por exemplo, Jair Bolsonaro, que está a ser julgado por tentativa de golpe de Estado – depondo, com um ar cordato, quase de “cordeiro manso”, jurando, contra as evidências, que sempre jogou dentro das “quatro linhas” da Constituição.

Longe e perto, há muitos a apoiar aqueles e outros crimes, numa lamentável passividade ou num indesculpável silêncio a seu respeito. Longe e perto, há quem tenha em Trump um farol: e alguns, se chegados ao poder, poderiam ser ainda piores. O que por um lado é consequência e por outro potencia o clima de ódio, violência, intolerância, mentira, que se vive em várias latitudes. Reduzidos a zero ou à expressão mínima, como estão no Ocidente, regimes criminosos e totalitarismos de sinal oposto, tudo isto se traduz em ressurgimento e ação de grupos nazi-fascistas, e/ou crescimento exponencial de uma extrema-direita que às vezes deles se aproxima e sempre lhes constitui fator propício.

Vêm estas obviedades, que não resisti a trazer à colação, para “enquadrar” os recentes atos de violência e as ameaças de cariz fascista, racista, que ocorreram também entre nós. Enquanto nos EUA, além do resto, uma senadora democrata e o marido são assassinados por um desses “produtos” extremos do terrível momento que atravessamos. E a que se impõe resistir, cujas causas é imperioso combater.

De facto, não é tolerável mais a complacência, a passividade, a inação. As diferenças entre direita e esquerda continuam a existir, embora não as mesmas do passado. Mas na atual situação a primeira clara clivagem, e a primeira linha do combate, em todas as frentes, deve ser, tem de ser, entre os que defendem a democracia e os que querem destruí-la; entre os que advogam a tolerância, o respeito pelos outros, e os semeadores de ódio; entre o humanismo e a lei da selva; entre a decência e a indecência.

E quando se praticam crimes como os referidos, que líderes políticos e mentores ideológicos daqueles setores extremistas se veem obrigados a condenar, não podem alijar a sua responsabilidade na criação da situação e do clima de ódio em que se inserem, ou que poderão estar mesmo na sua base.

Começar a “agir”

No quadro do combate a que se refere o texto, uma das primeiras medidas indispensáveis é aprovar uma legislação que permita evitar, quanto possível, a ação criminosa dos grupos que ali se referem, bem como a impunidade de que atualmente gozam os que mentem, insultam, difamam, através das redes sociais. Não sou frequentador, mas pelo que leio é verificação/opinião unânime ser assim – e não poder continuar assim.

No Brasil o Supremo Tribunal Federal acaba de tomar, quase por unanimidade, uma importante decisão nesse domínio, para a qual remeto os governantes e legisladores portugueses. Também concordo com o que Pedro Marques Lopes diz no seu magnífico texto da nossa última edição.

Tem-se falado muito da “reflexão” necessária após os resultados das legislativas. Os responsáveis pelas televisões são dos que mais precisam de “refletir”, e mudar. Mas há muito mais.

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