segunda-feira, 14 de outubro de 2024

Mas, afinal, quem é que são as “pessoas”?

“Quando quero saber o que as pessoas pensam, peço à minha mãe para ir ao café”, dizia-me há dias alguém que circula pelos corredores do poder. Neste focus group improvisado, a mãe vai lançando temas, ao ritmo a que se sorvem as bicas e se trincam os folhados. E o filho, feliz, lá vai percebendo que os comentadores da bolha valorizam o que lá no café não vale nada e fica, assim, com a certeza de que, apesar de todas as críticas televisionadas, a popularidade do Governo está em altas.


Há muitas pessoas. Há “as pessoas lá em casa”. As “pessoas” em quem o Governo pensa. As “pessoas” a que a oposição quer dar resposta. As “pessoas” esquecidas pelo poder. As “pessoas” que reclamam menos impostos. As “pessoas” que querem melhores serviços públicos. As “pessoas” que trabalham. As “pessoas” de bem. As “pessoas” fora da bolha.

As “pessoas” são o novo país real. São uma entidade abstrata cuja invocação cria um lugar de autoridade. “Eu sei o que as pessoas lá em casa estão a pensar”. “As pessoas não querem isso”. “As pessoas gostam disto”. Não é preciso dizer mais nada. O autor da frase transforma-se em oráculo, ungido com o poder de falar em nome das “pessoas”.

Sim, porque “é preciso pensar nas pessoas”. Quais pessoas? Ninguém sabe. Mas também ninguém sabe bem o que é o “país real”, a não ser que é um sítio que fica muito longe de Lisboa, aonde nunca ninguém vai e que políticos, comentadores e jornalistas nunca visitaram. A não ser, claro, que o invoquem. Nesse caso, são eles os iluminados com a verdade de terem visto o “país real”, que falam aos que nunca vislumbraram tal lugar e vivem em cenários de papelão, onde nunca nenhuma “pessoa” habitou.

Mas quem são, afinal, as “pessoas”? Não se exasperem. As “pessoas” podem ser qualquer um. Ou será que não? Normalmente, as “pessoas” são quem nós queremos que elas sejam. São as que nos dão jeito para defender o argumento que trazíamos na algibeira, as que estão alinhadas com os nossos pensamentos e propósitos.

E, claro, as “pessoas” fazem-nos parecer humanos e reais. Porque, no fundo, toda a gente sabe que políticos, comentadores e jornalistas não são humanos nem reais. Vivem na bolha. E cá fora estão as “pessoas”. Reconhecer isso é da mais profunda humanidade e sapiência.

Mas, claro, nem todos os humanos são “pessoas”. Ou, pelo menos, há alguns que são mais “pessoas” do que os outros. Há os ilegais e as “pessoas” de bem. Há os que servem de escudo humano aos terroristas e as “pessoas” que são vítimas. Há os que vivem em tendas e as “pessoas” que têm direito a viver em ruas limpas.

É que as “pessoas” não são o povo. O povo desapareceu dos discursos. Era muito coletivo e abstrato. E tinha o cheiro a bafio das coisas que já não se usam nem parecem modernas. O povo cheirava a povo. As “pessoas” são assépticas, modernas, prontas a viver num mundo novo. E não vão nas carneiradas das manifestações, porque as “pessoas” sabem que têm de fazer tudo por si.

As “pessoas” são empreendedoras e percebem que quando alguma coisa corre mal, a culpa também é delas, que não se esforçaram nem tiveram civismo. Ou, então, é do Estado, que falha tanto e ninguém sabe ao certo o que é, mas seguramente não são as “pessoas”. Ou talvez sejam outras “pessoas”, aquelas que vivem à conta e se encostam, mas essas não são as “pessoas” que interessam. Essas não são as “pessoas” que aparecem nos discursos dos políticos, dos comentadores e dos jornalistas.

Tantas “pessoas” e ninguém.

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