Nações democráticas e ditaduras atuam em função dessa realpolitik de uma forma muito semelhante, nenhuma está inocente da prática de atos que violam qualquer restrição moral e o direito internacional. No entanto, há diferenças de dimensão, dado que as democracias respondem perante as suas opiniões públicas traduzidas no voto, e as ditaduras e os ditadores não têm de dar nenhuma explicação a ninguém.
Isto significa que, mesmo sem garantia de eficácia, uma ideia moral do que se pode ou não fazer, sejam quais forem as circunstâncias, e a aceitação do primado do direito, é sempre relevante nas democracias. Mais, é uma parte constitutiva das democracias a ideia de que, para além da hipocrisia, haja coisas que não se podem fazer e que devem ser condenadas sem “mas” e punidas sem hesitação. Sancionadas duramente e os seus responsáveis punidos como criminosos que são.
É o caso da atual guerra regional que Israel conduz no Médio Oriente. Há muito que não é uma guerra de resposta ao massacre do Hamas que fez agora um ano, nunca foi uma guerra existencial pela defesa do Estado de Israel – legítima, caso fosse –, porque quem escreve estas linhas considera inaceitável a turma do “desde o rio até ao mar”. É uma guerra que aceita que, para matar um militante do Hamas ou do Hezbollah, se podem matar cem velhos, mulheres e crianças, com total indiferença, que considera normal destruir a precária infraestrutura de Gaza, casas, hospitais, escolas, tudo, sem a menor hesitação, que enuncia claros objetivos de alargamento territorial.
E não me venham com a história de que o fato de dois grupos terroristas se esconderem num escudo de civis, e usarem escolas, hospitais, instalações da ONU – coisa que eles fazem – justifica o que Israel faz. Israel tem recursos e meios para chegar aos seus objetivos militares e tempo para o conseguir sem este massacre quotidiano. Não, não é a razão militar que justifica o que está a ser feito, é considerar que ser palestino é ser terrorista, é atribuir uma culpa coletiva às populações de Gaza e do sul do Líbano que, quando inclui as mulheres, as crianças e os velhos, é moralmente obscena. E é, pela simultaneidade do que está a acontecer com os colonatos e as violências incentivadas pelo atual Governo de extrema-direita, uma guerra por território e uma limpeza étnica.
Israel é uma democracia, que beneficiava de uma simpatia em muitas democracias, mesmo sem que essa simpatia tivesse que ver com importantes comunidades judaicas, como nos EUA. Tinha simpatia muito para além do sionismo, à esquerda por exemplo, pela sua origem em certas experiências socializantes, como os kibutz. E tinha simpatia porque os seus adversários ou eram ditaduras árabes ou grupos terroristas capazes das maiores atrocidades. Israel estava no pior sítio do mundo para ser uma democracia e, mesmo quando havia preocupação pelo destino imerecido e violento dos palestinianos, a ideia de que tinha todo o direito de se defender dos seus péssimos vizinhos era muito consensual.
Hoje, tudo isto mudou e são evidentes os estragos que Netanyahu e o seu Governo fizeram ao prestígio de Israel, atuando de forma criminosa, palavra que resume tudo. E começo pelo prestígio, porque ele existiu em muita gente que era amiga de Israel e para quem a acusação, hoje vulgar, de ser antissemitas é insultuosa. Essa parte da opinião pública protegia e apoiava Israel junto dos governos das democracias. Isso acabou hoje.
Do mesmo modo, o tratamento criminoso, volto à mesma palavra, dos palestinianos deu uma nova visibilidade à sua causa, criou uma grande solidariedade e deu alento à reivindicação dos dois estados e a uma maior condenação das ações dos colonos israelitas. Aqui também há um ponto sem retorno.
Dito tudo isto, é inadmissível a complacência que a União Europeia e o Governo português têm mostrado face a esta guerra. Lestos, e bem, em condenar e sancionar a Rússia pela invasão da Ucrânia, nem de perto nem de longe responderam às violências israelitas, nem às sistemáticas violações do direito internacional, nem sequer se mexeram muito para defender a ONU e António Guterres, ambos alvos de Israel, que ataca tudo à sua frente no terreno e na diplomacia, que não merece esse nome.
Há que compreender que esta hesitação miserável da Europa (Portugal incluído), que nem sequer tem grande papel como realpolitik, a não ser nalguns países por medo eleitoral, significa uma abjeção moral e uma cumplicidade inaceitável. Degrada-nos como país e como pessoas pela imoralidade.
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