Não é de agora que a mobilização popular se dá na cultura de medo e do pavor à modernidade e, aqui, na problemática modernização dos costumes. Os democratas prestariam um grande serviço à democracia se em sua militância levassem em conta a importância do diálogo respeitoso com a cultura anacrônica e tradicionalista dos simples. Que é, na verdade, repositório de valores sociais populares e insurgentes, socialmente criativos, em vez de desprezá-los e abandoná-los à voracidade de poder da classe média reacionária.
Convém ler Gramsci e Henri Lefebvre para compreender esse Brasil misterioso, um país do avesso.
Uma cultura de pavor começou a ganhar corpo e sentido há mais de meio século em uma anômica consciência de fim de mundo, de que a modernização dos costumes seria um sinal. Sinal, também, de que essa modernização se explicaria pela recusa de Deus e consequentemente pela vitória de satanás.
Não só entre católicos do catolicismo popular mas também entre protestantes e evangélicos. Entre esses, na concepção de que é possível assegurar a salvação enquanto há tempo, coisa de um deus mercenário vulnerável à venda de um lugar de primeira classe da carruagem de fogo de Elias. Ou mesmo para nela acolher os destituídos de meios, no pagamento por meio do sofrimento voluntário, como a fome por opção penitencial.
Foi o que aconteceu em Minas Gerais, em meados dos anos 1950, em Malacacheta, quando na Semana Santa um grupo de adventistas da promessa entrou em vigília de oração, à espera do profeta que viria buscá-los. E acabou matando crianças e animais, que estavam com fome porque perturbavam a celebração do arrebatamento próximo e a ascensão dos crentes ao céu.
Esse episódio está documentado num estudo de cientistas sociais da USP que foram ao local quando a polícia prendeu os participantes. Nesse estudo inspirado, Jorge Andrade escreveu a peça de teatro “Vereda da Salvação”, que Anselmo Duarte adaptou para o cinema no filme do mesmo nome.
Livrar o país desse satanás apocalíptico é o mote de uma cultura persistente e disseminada, herética, que tem contaminado vários âmbitos da realidade brasileira e desde os anos 2018, o âmbito das seitas religiosas instrumentalizadas pelo nosso autoritarismo político saudoso da ditadura militar.
Nos depoimentos divulgados do processo de 8 de janeiro, vários são de evangélicos que alegam ter ido a Brasília e participado da invasão dos palácios do Executivo, do Legislativo e do Judiciário para orar pelo Brasil, de joelhos. O que é perda de tempo pois Deus está do lado da democracia e do direito. Os fiéis dessa religiosidade tosca não sabem é que o cristianismo pressupõe que Deus é onipresente e onisciente. Brasília foi, portanto, um pretexto inútil.
Se o Estado brasileiro não fosse o de um país possuído pelo satanás do oportunismo, do autoritarismo e da saudade pela ditadura da repressão, da tortura e dos assassinatos, do republicanismo forçado, do capitalismo rentista e anticapitalista, provavelmente não teria havido o 8 de janeiro.
Teria em tempo tomado providências enérgicas e sérias para impedir que os lugares do poder fossem transformados em templos heréticos de uma religiosidade tosca e materialista. Se nesse sentido a Constituição e nela a separação entre Estado e religião fosse observada com rigor.
Um eloquente exemplo dessa religiosidade partidária foi a manifestação da então primeira-dama, em 7 de agosto de 2022, na igreja batista pentecostal da Lagoinha, em Belo Horizonte: “Vamos continuar orando, intercedendo em todos os lugares, sabem por quê? Por muito tempo aquele lugar (o Palácio do Planalto) foi um lugar consagrado a demônios e hoje consagrado ao Senhor Jesus. (...) Essa cadeira é do presidente maior, o rei que governa esta nação”. Bolsonaro ajuntou: “A função que ocupo é função de Deus”.
A baderna de 8 de janeiro foi momento de uma conspiração para transformar o Brasil numa república teocrática, antidemocrática, para colocar o país de joelhos. Sua lógica não é política porque imune à lei e às instituições. O castigo da punição dos que foram presos apenas lhes confirma que não se trata de punição educativa, mas provação justa e redentora, prêmio divino, pela transgressão da Constituição e pela violência contra as instituições.
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