Na quarta-feira, o primeiro-ministro do Reino Unido, Rishi Sunak, conseguiu aprovação para transformar em lei uma promessa de campanha nascida da cabeça platinada de Boris Johnson, seu desastroso antecessor. Trata-se de desestimular o afluxo de embarcações irregulares que cruzam o Canal da Mancha todos os anos, abarrotadas de migrantes em busca de asilo, deportando-os para Ruanda, país africano sem saída para o mar. Ali, a 6.500 quilômetros de Westminster, aguardariam o resultado de seu pedido de asilo.
Segundo dados do Observatório de Migração da Universidade de Oxford, 45.755 refugiados conseguiram chegar à costa britânica em 2022 pelas águas traiçoeiras da Mancha, em pequenos barcos, enquanto o total de imigrados irregulares chegou a 670 mil. Seria, portanto, uma medida irrisória, além de sua essência desumanizante e colonialista. Ela ainda precisará do aval da Câmara dos Lordes, que não demonstra o menor apetite para tratar do tema. O próprio Partido Conservador de Sunak ficou rachado, com alguns parlamentares exigindo medidas mais radicais enquanto outros apontavam para a inexequibilidade da operação.
Uma primeira tentativa de deportação para Ruanda, com Boris Johnson ainda em Downing Street, fora abortada judicialmente na 25ª hora, quando as turbinas do avião que levaria a carga humana rumo a Kigali já estavam ligadas. À época, o governo britânico havia feito um adiantamento de 240 milhões de libras esterlinas (o equivalente a R$ 1,5 bilhão ) aos cofres do presidente Paul Kagame, para cobrir o custeio dos deportados. Em Davos, Kagame reclamou da lentidão da operação e não falou em ressarcir de imediato os cofres de Sua Majestade. Entrementes, as 4 mil pessoas listadas para compor o pelotão inicial e aguardar, em Ruanda, autorização de asilo no Reino Unido simplesmente sumiram do radar do home office. São errantes escaldados por desesperança múltipla acumulada ao longo de suas muitas travessias.
Na quinta-feira, foi a vez de o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, remoer com bota a ferida mais exposta do Oriente Médio desde o final da Segunda Guerra Mundial. Em entrevista tensa concedida na base militar de Kirya, em Tel Aviv, ele rejeitou a perspectiva da criação de um futuro Estado Palestino independente e soberano. Nem ontem, nem hoje, nem amanhã. Nem mesmo se conseguir erradicar de Gaza o terrorismo do Hamas, responsável pelos atos de barbárie e desumanidade praticados em 7 de outubro contra civis israelenses. A mensagem de Bibi foi clara, mesmo sob pressão dos Estados Unidos e de movimentos democráticos em seu próprio país: todas as terras palestinas continuarão sob ocupação do Estado judeu.
E o que sobrar da população civil de Gaza, encurralada num pedaço reduzido do enclave onde persiste a teimosia humana de sobreviver? Netanyahu não disse, mas vozes do primeiro escalão de seu governo falaram por ele: que saiam de Gaza, larguem o chão onde nasceram, procurem outro lugar como tantos outros obrigados a se tornar errantes antes deles.
Consta dos arquivos do Estado de Israel uma minuta datada de 55 anos atrás, que autorizava o governo a transferir 60 mil palestinos de Gaza ao Paraguai:
— Decisão Shin.Taf/24 do Comitê Ministerial para a Administração de Territórios, 29 de maio de 1969, Imigração Árabe. Aprovada a sugestão do Mossad para a emigração de 60 mil árabes dos territórios administrados de acordo com os seguintes termos (...).
Os quatro itens listados no documento estabeleciam a responsabilidade de Israel com as despesas de viagem de cada emigrado, a alocação de US$ 100 para cobrir seus custos iniciais de instalação, o pagamento de US$ 33 por palestino ao governo do Paraguai e o desembolso imediato de US$ 350 mil para a operação com os 10 mil primeiros selecionados. Levi Eshkol, o primeiro-ministro daqueles tempos expansionistas que se seguiram à Guerra dos Seis Dias, não poderia ter sido mais claro:
— Quero que todos vão embora, nem que seja para a Lua.
Foi um experimento que deu terrivelmente errado. O Paraguai, nos confins da América do Sul, então comandado pelo ditador Alfredo Stroessner, tinha ainda menos a ver com a alma palestina que Ruanda tem a ver com um refugiado da Síria. Quem primeiro revelou a operação foi o jornalista israelense Yossi Melman, em 1988. Ele havia atuado nos serviços de Inteligência de seu país. E quem se aprofundou no tema mais recentemente foi a antropóloga americana de origem palestina Hadeel Assali. Em artigo para a London Review of Books de 10 de maio de 2023, ela mergulha na memória de um tio natural de Gaza, ainda vivo. Rapazote em 1969, Mahmoud embarcara com um laissez-passer fornecido pela ONU para, segundo os ocupantes israelenses, trabalhar um ou dois anos no Brasil. Depois poderia retornar a Gaza. Era embuste, nem sequer viu a cor do Brasil.
Errantes sempre houve e haverá. Cabe a nós não esquecê-los.
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