terça-feira, 30 de janeiro de 2024

O racismo sem limites: agora a UNRWA

Que porcentagem de 30 mil empregados são 12 empregados? Pus num calculador da Net, deu 0,04. Imaginem agora 30 mil pessoas num hospital, numa escola, numa cidade. Suspeita-se que 12 estejam envolvidas num ataque brutal. Essas 12 são despedidas, uma investigação é iniciada. Mas mesmo assim, por causa de 0,04, todas as outras são castigadas. Todas as outras 29.988. Que no caso de que vou falar prestam uma assistência vital a 5,9 milhões de pessoas. Mais de metade da população portuguesa.

É o que está a acontecer desde ontem com os 30 mil empregados da UNRWA, a agência que em 1949 a ONU criou para apoiar os refugiados palestinianos. Em 1949: desde o fim da guerra que se seguiu à criação do Estado de Israel, que para os palestinianos é a Nakba, a Catástrofe. A UNRWA começou a trabalhar em 1950: eram 750 mil refugiados em tendas. Agora são 5,9 milhões de refugiados em campos de cimento. Que em Gaza, desde 7 de Outubro, voltaram a ser tendas amontoadas num espaço impossível.

O mais antigo problema de refugiados do mundo. Um limbo único, que nos envergonha a todos. Avós, pais, filhos, sucessivamente nascidos num buraco da justiça, aos quais toda a comunidade internacional deve uma solução desde 1948. Vamos em 76 anos.

Mas isto não impede que algumas das potências brancas se precipitem desde ontem a suspender toda a ajuda à UNRWA. Primeiro, os Estados Unidos. Depois, à hora a que escrevo, a Austrália, o Canadá, a Itália, a Finlândia e o Reino Unido. A UNRWA vive quase exclusivamente de fundos dos membros das Nações Unidas. E que faz a UNRWA? É a responsável por aquilo de que o mundo se descartou há 76 anos: a educação, saúde, habitação, alimentação, infra-estruturas, serviços sociais, assistência de emergência, microfinanciamentos de 5,9 milhões de palestinianos que tinham um território, mas continuam a não ter um Estado. Que estão em Gaza, na Cisjordânia, em Jerusalém Oriental e nos países vizinhos para onde foram forçados a fugir, Jordânia, Síria, Líbano. A UNRWA trabalha em todos eles. Há diferenças entre as condições que cada país lhes deu. Fora da Palestina, os que estão pior são os do Líbano. Campos miseráveis, vidas sem horizonte, interditas a inúmeras profissões.

Desde 7 de Outubro vimos escancarar-se como nunca a indecência de regimes do mundo branco. Aquilo a que podemos chamar “dualidade de critérios”, ou mais claramente “racismo”. Um racismo que ontem perdeu um pouco mais a vergonha. Não basta ao mundo branco que as pessoas suspeitas tenham já sido afastadas, e que a UNRWA tenha assumido a responsabilidade, e gravidade, da investigação. Estas potências querem provar uma vez mais como estão horrorizadas com os 1200 mortos israelitas (sem perderem o sono com os 26 mil mortos palestinianos, e todos os outros a ser bombardeados neste instante). Então, fazem questão de dar a Israel ainda isto: cancelar o dinheiro para que seis milhões de refugiados sobrevivam. E o verbo é “sobreviver”, porque o mundo lhes nega uma vida digna.

Tenho questões com a acção humanitária, e especificamente da ONU. Escrevi sobre isso antes e depois de 7 de Outubro. Sobre como a assistência pode contribuir para perpetuar os problemas que alivia, desresponsabilizando quem é suposto resolvê-los. Atalhando: se o mundo pode viver com 5,9 milhões de refugiados palestinianos atirados para debaixo do tapete, e isso continua a não ser cobrado a Israel, também foi porque a UNRWA esteve lá a fazer com que não morressem à fome. E claro que isso é parte do problema, se queremos olhar as coisas de frente. Um problema de todos nós.

Depois do que vi em Dezembro–Janeiro pela Cisjordânia e em Jerusalém Oriental (já que em Gaza os repórteres não podem entrar), deixei a Palestina com a sensação de mais uma Intifada a explodir, tal a aflição, o cerco. Enquanto Gaza morre, e os que não morrem sofrem danos para sempre.

Apesar de, também ontem, os juízes de Haia terem exposto de forma inédita num tribunal as violações de Israel à lei internacional, não foram ao ponto de pedir o cessar-fogo. E agora EUA, Canadá, Austrália, Reino Unido, Itália e Finlândia (para já) suspendem o ventilador da UNRWA. Porque os 5,9 milhões que dependem dele são palestinianos. E os palestinianos não contam como vidas brancas.

A cada dia, a mentira dos regimes brancos é mais visível. Digo regimes brancos porque as categorias Norte e Ocidente não dão conta (por exemplo, da Austrália). Regimes racistas e reféns de Israel. Da sua própria culpa.

Hoje mesmo, sábado, o ministro dos Estrangeiros de Israel pediu o fim da UNRWA, simplesmente. Que não faça parte do “day after” da guerra de Gaza. Num ponto estamos de acordo: sim, que a UNRWA deixe de existir — mas porque deixaram de existir refugiados palestinianos. É esse fim que queremos.

Poderá a União Europeia, entretanto, contrariar o racismo desta punição colectiva? Ou esperamos por uma Intifada geral?

Alexandra Lucas Coelho 

Nenhum comentário:

Postar um comentário