quarta-feira, 18 de outubro de 2023

Ensaio sobre a surdez

Um motorista parado no sinal descobre subitamente que perdeu a visão. Assim começa o "Ensaio sobre a Cegueira", do escritor português José Saramago. Um a um, os habitantes da cidade percebem que já não podem mais ver. Como muitos agora não podem mais ouvir.

No romance de 1995, a “treva branca” se espalha de forma incontrolável. Como se a lembrar a responsabilidade dos que ainda podem ver, quando muitos dos demais habitantes da cidade se acostumam à recente cegueira.

Se ainda estivesse por aqui, diante de duas guerras e da cacofonia das redes sociais, Saramago poderia escrever um novo ensaio, mas desta vez sobre a surdez. Ou sobre a responsabilidade dos que ainda ouvem quando se espalha a surdez – não como epidemia, mas como opção.

A inspiração poderia bater-lhe à porta por meio das imagens do sofrimento de jovens russos e ucranianos, israelenses e palestinos. Homem de esquerda por toda a vida, ele teria suas preferências políticas. Mas não deixaria de perceber como esse sofrimento comum nos revela tão humanos.

Hoje, além de opcional, a surdez é seletiva. A transmissão instantânea de imagens das guerras é rapidamente seguida pela divulgação igualmente instantânea de opiniões e julgamentos em apressadas redes sociais.

Quando a imagem de uma jovem pessoa atingida pela guerra coincide com a posição política de um candidato a influenciador, esse candidato rapidamente a divulga, acompanhada das mais ácidas legendas.

Se a imagem é a de uma igualmente jovem pessoa atingida pelas armas do lado pelo qual se nutre simpatia, opta-se por não a retransmitir. Ouve-se o choro da pessoa que está de seu lado. E não se ouve o lamento de alguém que sofre do outro.


A surdez seletiva já chegou a debates universitários e os interrompeu com sua intolerância. Qualquer palavra fora de lugar já será suficiente para motivar um julgamento sumário. E, quando se decreta que alguém se encontra do lado oposto, não se ouvem mais seus argumentos.

Há décadas a rivalidade entre israelenses e palestinos motiva paixões em todo o mundo. Desde que se decidiu permitir a criação de um Estado judaico naquela região, após o holocausto da Segunda Guerra Mundial, abriu-se um fosso político.

Sem o estabelecimento igualmente de um Estado palestino, têm alertado as mais sensatas vozes ao longo das últimas décadas, não haverá estabilidade na região.

Depois de muitas guerras, rebeliões e revoltas ao longo do século 20, a situação – ainda que tensa como sempre – parecia razoavelmente sob controle. Até que o mais cruel e violento ataque terrorista do grupo Hamas mostrou que nada mais seria como antes.

Os israelenses, até então divididos pelo governo radical de extrema direita de Benjamin Netanyahu, logo se uniram em emergência nacional para organizar uma resposta ao Hamas. E o mundo inteiro passou a temer as consequências de um iminente ataque israelense a Gaza.

Enquanto os generais de Israel planejam seu contra-ataque, o planeta é inundado com sons e imagens de palestinos em fuga. Da mesma forma como já havia sido invadido, dias antes, por sons e imagens do assassinato de jovens que dançavam em uma festa em Israel.

A guerra nos novos campos de batalha é logo seguida por uma guerra disso que nos habituamos a chamar de narrativas.

Nas redes sociais os sons e imagens de sofrimento são convertidos em propaganda política. Se o sofrimento é de alguém de um campo de simpatias, logo acusa-se o campo adversário.

Mas não se demonstra nas mesmas redes empatia com o sofrimento de pessoas comuns, ainda que crianças ou idosos, do lado que se considera inimigo.

Assim corremos todos em direção a uma desumanização. Uma tendência que já marcou diversas sociedades ao longo dos séculos antes de grandes conflitos. Vale tudo em nome de alguma causa.

Os sinais que nos chegam do Oriente Médio não são promissores. Ao contrário, indicam a possibilidade de uma guerra longa que, na pior das hipóteses, poderá atrair novos e perigosos atores ao longo dos próximos meses.

Até aqui só parece claro que dificilmente qualquer lado conseguirá total sucesso por meios militares. Sem uma ampla negociação não haverá paz duradoura.

Por isso as palavras neste momento importam tanto. E por isso os adeptos da surdez seletiva precisam estar atentos. A própria estabilidade global pode estar em risco.

Um esboço de possível declaração do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas a respeito do conflito já chegou às mãos do presidente Luís Inácio Lula da Silva. Grandes discussões estão à frente.

O acaso deu ao Brasil a responsabilidade de dirigir o conselho em um momento de grave crise. E a oportunidade de estimular os representantes de cada país ali representado a ouvirem uns aos outros para que se mantenham abertas as portas da negociação.

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