Mas há uma dimensão da escravidão sobre a qual se fala muito pouco. O fato de ela ser uma instituição formada não só por pessoas escravizadas, mas por pessoas que eram proprietárias de escravizados. Esse resquício perverso da escravidão muitas vezes é visível quando, na nossa contemporaneidade, nos deparamos com os inúmeros casos de situações análogas à escravidão ou então com a manutenção de discursos, práticas e legislações que entendem as empregadas domésticas (negras, em sua maioria) como trabalhadoras que não precisam ter seus direitos trabalhistas assegurados, pois "são da família” de seus patrões – e nesse sentido é sempre bom lembrar como a votação da PEC das Domésticas em 2013 causou uma comoção em diferentes setores sociais, que não consideravam necessário que as empregadas domésticas ganhassem férias e 13º salário, já que elas comiam a comida oferecida pelos seus patrões (embora nem sempre fosse a mesma comida que seus patrões comiam).
Pois bem, infelizmente as heranças nefandas da escravidão não se limitam à maneira como o brasileiro e a brasileira médios tratam seus empregados domésticos hoje em dia. Há uma dimensão igualmente importante sobre a qual ainda reside um silêncio profundo: a relação entre a escravidão, a criação de fortunas e o sistema financeiro no Brasil.
No último dia 27 de setembro, o Ministério Público Federal abriu um inquérito contra o Banco do Brasil baseado no fato de que o surgimento deste banco, ainda no século 19, se deu com o capital oriundo do tráfico de africanos escravizados. Quando D. João aportou no Rio de Janeiro em 1808, o que ele encontrou foi uma elite econômica formada fundamentalmente por colonos fluminenses que eram traficantes de africanos escravizados. A transformação do Rio de Janeiro em sede do império português só foi possível porque D. João contou com o financiamento desse grupo de traficantes. Desse modo, grande parte do capital que viabilizou a formação do primeiro Banco do Brasil tinha essa origem.
Muitos podem contra-argumentar que mesmo sendo terrível, em 1808 o tráfico de africanos escravizados era uma atividade legal no Brasil, de modo que isso não configuraria nenhuma infração – embora atrele o surgimento do banco a um dos maiores crimes contra a humanidade.
Mas a história não parou por aí.
Depois da sua falência em 1829, um novo Banco do Brasil foi fundado em 1853. Esse novo Banco do Brasil – que existe até hoje – foi fundado em meio a uma política ilegal da qual o Estado brasileiro foi cúmplice e também autor: o tráfico ilegal de africanos escravizados. No ano de 1831, o infame comércio foi finalmente abolido para o Brasil. Acontece que nos anos subsequentes houve um grande acordo nacional entre as elites políticas e econômicas do país (sobretudo da atual região Sudeste), que reabriram o tráfico na ilegalidade. Entre os anos de 1835 e 1850 mais de 700 mil africanos escravizados foram traficados ilegalmente para o Brasil. E se isso não bastasse, o dinheiro advindo do tráfico e do trabalho desses homens e mulheres que, segundo as leis brasileiras, deveriam ser livres, foi utilizado para criar o sistema financeiro do país, num grande esquema de lavagem de dinheiro.
O documento apresentado pelo Ministério Público conta com a assinatura de mais de 14 historiadores (grupo do qual faço parte), cujas pesquisas demonstram, por exemplo, que um dos maiores acionistas do Banco do Brasil, José Bernardino de Sá, não por acaso foi um dos maiores traficantes de africanos escravizados na era da ilegalidade. E, como bem demonstram as pesquisas de Clemente Penna e Thiago Pessoa, esse não era um caso isolado. Homens que ocuparam cargos no alto escalão do Banco não eram apenas senhores de centenas de escravizados, mas os adquiriram de forma ilegal. Na realidade, grande parte das fortunas que se constituíram no país a partir da década de 1830, incluindo aquelas vinculadas à criação do sistema financeiro brasileiro (e aqui outros bancos podem ser listados), estavam diretamente ligadas ao contrabando de homens e mulheres africanos na condição de escravizados.
Não basta reconhecer que o tráfico transatlântico foi um crime contra a humanidade, é preciso criar medidas que reconheçam esse crime e sua extensão nos dias atuais. A ação do Ministério Público é um passo fundamental na consolidação de uma política nacional de reparação histórica do Estado brasileiro frente às escolhas políticas feitas no passado escravista. E para que haja justiça, é preciso que haja responsabilização.
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