Graciliano Ramos, em Palmeiras dos Índios (AL) |
No caso das sociedades tidas como homogêneas (em termos de etnia ou aparência física — esses eufemismos para “raça”), havia o pressuposto segundo o qual a posição numa escala econômica de “dominação de classe” predominava, alienando o universo humano dos laços sociais. O inverso seria o caso dos sistemas subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, como o brasileiro.
Num sistema moderno e plenamente capitalista, as normas impessoais do mundo público (economia + política + Estado + religião civil) teriam — na vida pública — predominância sobre os laços de família, compadrio e amizade. Vale dizer, conforme propôs Henry Sumner Maine no livro “Ancient Law”, em 1861 — e eu furtei em a “A casa & a rua” em 1985 —, que as relações consagradas no espaço social da família, com origem na morada, canibalizavam cargos e éticas, exigidas pelo aparato do “Estado” e da cidadania, o universo da rua.
O caso de Pedro Honorato é emblemático. Eleito prefeito de sua cidade, ele — um raro fiel da ética republicana feita de igualdade, impessoalidade e competência e alerta para o fato de que, como prefeito, administrava algo que era coletivo e não da sua casa ou partido — não nomeou nenhum parente ou amigo. Foi imediatamente posto de quarentena amorosa por sua esposa (dizem que ela queria nomear o irmão como secretário municipal) — e exprobrado como ingrato, indiferente e mal-agradecido. Para os membros de sua comunidade, o republicanismo de Pedro Honorato não era virtude, era insensibilidade, posto que traía os mandamentos não escritos que governavam o universo das “pessoas” dos que estavam mutuamente ligados por condescendência, sangue e empenho. O resultado, conforme definiu um dos seus ex-compadres, o Coronel Furtado, o levou a um isolamento moral (hoje chamado de “cancelamento”) e à expulsão muda da autocongratulatória consciência festiva das elites locais, porque Pedro Honorato tornou-se inclassificável. Não seguia o padrão de apadrinhar amigos em nome de um partido formalmente popular; mas também não seguia o padrão polarizador inconsciente do “agora somos nós”, dos “donos do poder” de nomear e enriquecer pela lógica do “toma lá dá cá” à custa do Estado. Individualizado, morreu sozinho na tal “rua da amargura” de que minha mãe tanto falava e que tantos bandidos disfarçados de políticos mereciam.
Chamei tais sistemas de “relacionais” porque neles a filiação, o parentesco e os laços modelados pela reciprocidade (o circuito do dar para receber) contrastavam com o conjunto de ideais impessoais que simultaneamente governam o mundo republicano e democrático, mas, é preciso lembrar, não têm o mesmo valor.
O dilema da competência que pode ser antipaticamente impessoal tem muitas variantes que a nossa sociologia dialética ignorou. Nessa questão, cabe explicitar novamente as premissas ou axiomas da nossa “ética relacional”, que é muito mais forte do que pensa a nossa otimista ideologia mudancista e polarizadora, pois ela dorme dentro de cada um de nós, ao passo que o nobre “comunismo”, cristão ou materialista, chega de fora para dentro e tem a leveza do livro do Milan Kundera repleto desses dilemas entre o formal da estrutura ideológica e a plasticidade das pessoalidades que estruturam esse “humano” sempre surpreendente.
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