quinta-feira, 20 de julho de 2023

Cadáveres indigestos

Há uma crise de abutres na Índia: dos 40 milhões de aves que existiam há 30 anos, restam pouco mais de 20 mil. Desde que os dinossauros foram extintos, nenhum outro animal correu o risco de sumir tão rapidamente da face da Terra, nem mesmo o dodo, que levou 64 anos entre ser descoberto pelos seres humanos e desaparecer por completo.

O declínio dos abutres indianos começou a ser notado em fins dos anos 1990. Até então, eles viviam como reis — imaginem um país predominantemente vegetariano, onde as vacas são sagradas e os porcos são tabu para as duas principais religiões.

Era banquete em cima de banquete.

Quando os abutres começaram a sumir, todo mundo pensou nos suspeitos de sempre, do uso de agrotóxicos a doenças infecciosas, passando pela urbanização desenfreada e pela destruição do meio ambiente; mas nada explicava uma queda de população tão catastrófica.


Foi difícil esclarecer o caso: a legislação indiana proíbe o abate dessas aves, ainda que por motivos científicos, e encontrar corpos mortos em condições próprias para pesquisa é quase impossível. Em 2003, finalmente, um time do The Peregrine Fund, ONG especializada em rapineiras, chegou ao culpado: o diclofenaco, anti-inflamatório bem tolerado pelo gado, mas letal para aves que eventualmente se alimentam dos restos de bois e vacas medicados.

Diclofenaco é o nome científico do nosso velho conhecido Voltaren.

O seu uso veterinário foi proibido na Índia em 2006, mas aí mais de 99% da população de abutres já havia sido dizimada. No momento, há oito centros de criação espalhados pelo país para tentar reverter a situação.

A falta dos abutres (não confundir com urubus) é um desastre ecológico. Na sua ausência, carcaças apodrecem em áreas públicas nas aldeias e contaminam o solo e a água, enquanto outros animais carniceiros, como ratos e cães vadios, proliferam. A questão é que não só eles não são faxineiros tão eficientes, como, ainda por cima, podem se contaminar com as carcaças em decomposição, tornando-se transmissores de doenças sérias.

Mas ninguém na Índia está sentindo tanto essa crise quanto os parsis, uma minoria étnico-religiosa que depende desses pássaros para dar fim aos seus mortos. Descendentes dos antigos persas zoroastrianos, eles acreditam que os cadáveres, impuros, não podem entrar em contato com a água, a terra ou o fogo, elementos sagrados.

Quando alguém morre, portanto, é logo levado para a Dakhma, ou Torre do Silêncio, onde os corpos nus são depositados ao relento, sobre placas de pedra — e rapidamente devorados pelas aves.

Antes do diclofenaco, os abutres resolviam a questão em menos de uma hora. Os ossos limpos eram curados pelo sol e pelo vento, e recolhidos num poço onde o tempo e a cal cuidavam deles. Um sistema prático e limpo, que evitava a decomposição, alimentava as aves e igualava ricos e pobres num mesmo ritual.

Sem os abutres, os corpos levam meses para se desintegrar.

Os parsis já tentaram instalar painéis solares nas torres para acelerar o processo, assim como criar essas aves em cativeiro na sua vizinhança, mas sem muito sucesso.

Assim como os abutres, os parsis são, eles também, uma espécie em extinção. A maioria vive em Mumbai e, mesmo lá, não chegam a 50 mil pessoas. Formam uma comunidade rica e influente que, ainda assim, está em declínio, às voltas com poucos nascimentos e com a imigração dos jovens.

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