sexta-feira, 20 de janeiro de 2023

A invenção do malandro e as milícias

Entre os anos de 1852 e 1853, Manoel Antônio de Almeida publicou folhetins que se tornariam, mais tarde, a obra Memórias de um sargento de milícias, um clássico do nosso romantismo. Órfão de pai aos 11 anos, era filho de portugueses: o tenente Antônio de Almeida e Josefina Maria de Almeida. Sua infância muito carente o fez cronista da baixa classe média carioca. Jornalista e escritor, com muitas dificuldades financeiras formou-se em medicina, em 1855, mas nunca exerceu a profissão. Morreu aos 31 anos, no naufrágio do navio Hermes, em 1861. Escreveu apenas mais um livro, Dois amores, além de ensaios, contos e poesias.

Ao ignorar a classe média alta e o maniqueísmo elitista com que era retratada à época, Manoel Antônio de Almeida descreveu a vida real do povo e a figura do malandro — pobre, sem ideal, vivendo da sorte e de oportunidades que surgiam. O cenário do romance é o Rio de Janeiro da corte de Dom João VI, que permaneceu no Brasil de 1808 a 1821. O grande protagonista da história é um anti-herói, Leonardo, filho de imigrantes portugueses — Leonardo Pataca e Maria da Hortaliça —, que se conheceram no navio que os trouxe ao Brasil “após uma pisadela e um beliscão”.

Flagrada pelo marido em traição, Maria das Hortaliças foge de casa; Leonardo Pataca abandona o pequeno Leonardo, que é criado pelo padrinho, um barbeiro, e sua madrinha, uma parteira que adorava missas. Transgressor, Leonardo é protegido por D. Maria, uma velha rica, tia de Luisinha, que deixa de ser sua paixão quando surge a bela mulata Vidinha, cujos primos arranjam uma forma de Leonardo ser preso pelo major Vidigal, mas ele consegue escapar.

O major jura prender Leonardo por malandragem, mas a madrinha consegue um emprego para Leonardo na ucharia-real, emprego que ele logo perderia por ter tido um flerte com uma das criadas do rei. Leonardo acaba preso por Vidigal, que fará dele, porém, um granadeiro de sua patrulha. Mesmo como soldado, Leonardo não deixa suas malandragens e acaba pregando uma peça em seu superior, o que lhe levará à nova prisão, de onde só sairá com nova intervenção de sua madrinha, Dona Maria, e de Maria Regalada, que era um antigo amor de Vidigal. Livre, por influência de ambas, Leonardo torna-se sargento da companhia de granadeiros. Como sargentos da ativa não podiam se casar, Leonardo recebe o título de sargento de milícias e casa-se com Luisinha, a sobrinha de D. Maria, que havia ficado viúva.

Manoel Antônio de Almeida descreve a invenção da malandragem. Na visão do antropólogo Roberto Da Matta, o Brasil urbano é carnavalesco (“não tem conserto”; “ninguém quer trabalhar”, “deixa tudo para amanhã”); autoritário, da regulamentação, do cartório e do arbítrio; e místico, do “outro mundo”, do “carma”, da “reencarnação”, do sobrenatural. De um lado, o Estado-nação, com território, bandeira, moeda, Constituição; de outro, a sociedade sem valores, com seus mitos e rituais.


Muito do que estamos vivendo na atual conjuntura política tem raízes antropológicas. É o caso das milícias, que nunca tiveram uma relação tão promíscua com os órgãos de coerção do Estado como no governo de Jair Bolsonaro. Esse é um problema muito sério, inclusive em decorrência da politização das Forças Armadas e de uma militância política bolsonarista armada até os dentes, que já começa a se arreganhar contra o governo Lula, com caraterísticas de uma milícia fascista. Segundo os repórteres Bruna Yamaguti e Leonardo Cavalcanti, do SBTNews, o governo Bolsonaro, somente no período de janeiro de 2019 a dezembro de 2022, liberou 1.100 armas por dia para o cidadão comum.

No total, 1,6 milhão de armas foram autorizadas pelo Exército e pela Polícia Federal. O aumento, se comparado aos quatro anos anteriores — das gestões de Dilma Rousseff e Michel Temer — foi de 88% (847 mil). O Exército, por meio do Sistema de Gerenciamento Militar de Armas (Sigma), liberou 904.854 armas em quatro anos. Já a Polícia Federal permitiu o registro e o porte de mais de 700 mil na gestão Bolsonaro, que operou uma estratégia para armar a população.

No governo Bolsonaro, mais de 40 decretos, portarias, instruções normativas e resoluções da Câmara de Comércio Exterior flexibilizaram o Estatuto do Desarmamento, de 2003. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinou um decreto que reduz o acesso a armas e munições e suspende o registro de novas armas de uso restrito de caçadores, atiradores e colecionadores (CACs). Também suspendeu as autorizações de novos clubes de tiro até a divulgação de uma nova regulamentação. Entretanto, a pasta está fora do tubo.

Entre as restrições estabelecidas estão a proibição do transporte de arma municiada, a prática de tiro desportivo por menores de 18 anos e a redução de seis para três a quantidade de armas a que cada cidadão comum tem direito. O novo governo também condiciona a autorização de porte de arma à comprovação da necessidade. Além disso, todas as armas compradas desde maio de 2019 devem ser recadastradas pelos proprietários em até 60 dias. Para reverter esse quadro, será preciso mexer no Estatuto do Desarmamento e reafirmar o monopólio do Estado sobre o uso da força, o que pressupõe apartar as Forças Armadas da política e restabelecer a plenitude da hierarquia e da disciplina.

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