Ainda uma semana depois do reconhecimento do resultado da votação, definido o nome do eleito, ajuntamentos estão ocorrendo em praças e portas de quartéis, os agitadores pedindo ditadura militar. Estranhamente, os comandantes militares, cujos quartéis são assediados, estão calados.
São decorrências da política de desmonte do Estado, das instituições e da própria sociedade pelo regime de 1º de janeiro de 2019, nas ameaças subversivas à ordem política.
Estamos em face de ameaças a uma inevitável e decisiva mudança social e política, cujos fatores vinham sendo gestados e acumulados desde o golpe de 1964. Bolsonaro, tenha ou não consciência disso, personifica o momento final de decadência do tenentismo.
Foram esses fatores atenuados com a redemocratização e a Nova República, e não suprimidos. Voltaram à superfície com o bolsonarismo na suposição falsa de que na eleição de 2018 a população pedia a volta da ditadura militar.
A anomia desta etapa da história brasileira expressa-se na desorganização social decorrente da desregulamentação política das relações sociais. Os regimes políticos repressivos, que expressam momentos como este, são criadores de situações de insegurança e medo que arrastam consigo para a nulidade da ineficácia e anulam valores e normas de conduta e de sociabilidade. A sociedade ficou confusa e desorientada, não só o presidente da República.
A tendência autoritária do governo que termina tem tido como característica a transgressão do que é próprio de mandato obtido de forma legal e constitucional. Porém indevidamente assumido como renúncia do eleitorado ao que é próprio de suas atribuições, no questionamento do pressuposto da alternância dos partidos no poder, em que se empenhou o governo nestes quase quatro anos.
O aparelhamento das instituições para consumar a tirania do poder pessoal tornou-se entre nós uma forma patológica de corroer as bases do que é propriamente a realidade social e política. Um meio de inviabilizar a vida coletiva e anular a competência dos cidadãos para reconstruir o tecido social em face da desordem personificada pelo próprio governante.
No limite, desordem instrumentalizada pelo oportunismo do consórcio de outro poder no poder, resultante dos fatores de tensão, de crise e de ruptura que nestes anos comprometeu a continuidade da sociedade que pedia socorro político urgente. O resultado da eleição foi um indicativo.
A questão é muito mais complicada do que a muitos parece. Na transição, disfarçada por algumas medidas protocolares, o governo que termina continuará ativo e barulhento no poder paralelo das redes, dos grupos de ativistas, como o dos caminhoneiros e o dos manifestantes de porta de quartel. Mas o ativismo antidemocrático persistente indica que Jair Messias manda muito menos do que supõe. Quando muito faz teatro de uma proximidade e de uma conivência que os militares não podem assumir porque funcionários do Estado, sujeitos às normas e aos rigores da lei. Nem o povaréu da agitação tem qualquer competência para levar o país à insurreição.
Fora do poder e por isso politicamente fraco, Bolsonaro dividirá o bolsonarismo. Os que parasitaram o Estado, avulsos e parentes, militares e civis, serão mandados de volta ao lugar de onde vieram. Sobrará a turba dos bajuladores e paus mandados de rua, fora do controle do governo oculto e do próprio Bolsonaro. As multidões reacionárias poderão gerar instabilidade. Para elas haverá a lei.
Os ajuntamentos subversivos de rua, dos inconformados, contra a vontade majoritária do eleitorado, dá cara e voz ao Brasil paralelo e ilegal instigado por ações e omissões do próprio presidente da República. O Brasil oculto da balbúrdia tem feito demonstrações agressivas e mesmo violentas, indicativas de um período de inconformismo intolerante que pode comprometer a democracia que tenta renascer. Tem características de comportamento de multidão, como o define Le Bon, o do sujeito coletivo divorciado da razão, de certo modo enlouquecido, como nos linchamentos.
As classes e os setores sociais mais incapazes de participar do processo de regeneração social e política, porque menos identificados com a sociedade a que pertencem sem querer pertencer, são os que com mais facilidade se empenham em transformar a anomia em identidade coletiva da minoria de que fazem parte.
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