quinta-feira, 10 de março de 2022

Os engajados

Quem só fala a verdade quando quer não se importa de mentir quando precisa. A reputação nada vale onde o oportunismo compõe o tipo sem compromisso, a mistura híbrida de esquerdista-direitista, liberal-intervencionista, paz e amor-belicista, constitucionalista-compadraste e cristão que não acredita no inferno. Vladimir Putin cavalga um cavalo morto cujo galope medonho levará a Rússia ao abismo.

A cortesia deste ator dúbio e compulsivo com a pátria é o engajamento brutal e “sincero” em empreendimentos egocêntricos. Engajamento fanático que dá ao crédulo a impressão de ser um forte. Cão de guarda da mentira, bobo da corte da verdade, tolera-se tudo em democracia extraviada.

O engajado se encaixa rápido onde poucos pairam acima do seu tempo, têm mínima cultura clássica e não veem o orgulho como aristocracia da honra pessoal. É a síntese do mundo imperfeito do carreirista que se dá por esclarecido. Entusiasta dos atalhos, ele amontoa tudo e roda como moinho. Se o herói é ruim, ele se convence de que é um ruim melhor, pois o outro é o ruim deles.

O engajado é o principal personagem com jurisdição sobre o mundo cingido. Sua tolerância a risco é grande. Ganha espaço nas nações onde a estratégia de defesa externa não é determinada por cálculos de inteligência geopolítica ou interesses socioeconômicos, mas pelo realismo de circunstância e o defeito moral do governante injusto.


O pano de fundo do conflito Rússia-OTAN, que pegou a Ucrânia para Cristo, é a força do engajado, que tolera tudo, em especial a intolerância. Obcecado em encaixar a realidade na sua verdade, se encontra obstáculo, entra em pane e, ao invés de parar, atropela. Colin Powell errou e se arrependeu por ter metido os EUA no atoleiro do Iraque. Putin não se arrependerá. Escravo hereditário da pior burocracia, come no prato que Lenin e Stalin comeram e joga os restos na cara da Ucrânia. Mesmo com a autodeterminação definida desde 1918, a Ucrânia sempre foi vilipendiada pelos governos russos.

Governo cercado de engajados em ilusões de ótica e manipulação erra mais. Misturado com armas atômicas e vassalos e indiferente aos melhores valores pactuados pelo mundo democrático e comercial, não respeita acordos e deve achar ridículo os EUA devolverem o Canal do Panamá e a Inglaterra, Hong Kong. Mais ainda conspiram contra a bela e oprimida Rússia, memórias do subsolo dos que partiram para cima de Dostoievski, Boris Pasternak, Andrei Sakharov.

O poder autoritário admira o líder plano, chato, profissional da presença, intimidador, inimigo dos valores individuais, do vigor da pessoa livre. Difícil não se incomodar com o torpor de ver a vida mover em direção a outros caminhos como fez Leon Tolstoi para se livrar do czarismo e Vladimir Maiakovski dos patrões de Putin.

Lembro um gigante que conhece bem o agir feito doido do perverso em política. Gulag, as pessoas sabiam que estava lá, ainda que um arquipélago muito distante, mas, psicologicamente, fundido ao continente – um mesmo país, invisível e imperceptível.

Acolhido pelo Ocidente capitalista mesmo sem aceitar sua cultura, não podendo voltar ao seu país socialista, por ser perseguido por sua cultura, encontra forças para criticar a decadência espiritual do mundo. Reencontrou seu país após o exílio e, descontente, expressa sua insatisfação com o fracasso que é a educação do povo, corrupção, desdém com a democracia entregue a plutocratas, herdeiros do nacionalismo imperial cujo orgulho está na ponta de armas e rublos de origem duvidosa. E se faz novamente malquisto. Inconveniente, mordaz, solitário entre compatriotas arrogantes, metidos em negociatas.

Vê sua terra longe da sonhada tradição religiosa e mística, cultura e destino únicos com vocação civilizatória destruídos por estúpidos governantes. Nunca deixou de pensar e defender a coexistência pacífica com sua Rússia, cultura antiga, profunda e enraizada em sua autonomia, que se espalhou por grande parte da superfície da terra, misturando em si um mundo autônomo, cheio de nuances e surpresas para o pensamento ocidental.

Intelectual usado que não se deixou usar, disponível para boas ideias nacionalistas, vacinado contra humores totalitários, de pé, eis Alexander Solzhenitsyn, capitão da artilharia avançada do exército russo na Segunda Guerra. Vencedor que terminou prisioneiro por escrever cartas de crítica ao tirano Josef e seu bigode. Um cidadão desagradável contra o desmancha prazer do despotismo. Preso no Casaquistão, submetido a trabalho forçado, conheceu o Gulag. Acolhido na Europa, ganhou o Nobel, exilou-se no interior dos EUA. Urso na Rússia sempre foi o poeta, livre, humanista, religioso.

Não há nova ordem mundial, mas sim o ostracismo da Rússia sufocada pela brutalidade de um alheio à afeição. Desinteressado de questões culturais, econômicas e comerciais, Putin confunde sua decadência pessoal com a do país. Retrógrado, quer do mundo um favor complacente: ser tratado como poder não econômico, acultural, capaz de consolidar noções de honra e coexistência pela ferocidade militar. Um nostálgico do conflito, a utopia do fanático.

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