O ex-chanceler Ernesto Araújo comparou medidas de isolamento social a campos de concentração nazistas. O senador Flávio Bolsonaro e o secretário de Cultura, Mario Frias, divulgaram um vídeo com trechos de “A lista de Schindler” e uma frase ao fim: “Não é a primeira vez que pessoas são classificadas em ‘essenciais’ e ‘não essenciais’”.
O ex-ministro Ricardo Salles disse que um artigo crítico a ele na imprensa alemã parecia “o que a própria Alemanha fez com as crianças judias”. “Omitir o uso da cloroquina é o mesmo que deixar judeus na dúvida entre chuveiro e câmara de gás”, segundo o blogueiro bolsonarista Allan dos Santos. Para Augusto Nunes, da Jovem Pan, ações contra o dono de uma pousada em Fernando de Noronha que recusara a vacina lembravam “o autoritarismo nazista contra judeus”. E a lista continua.
Setenta e sete anos após a libertação de Auschwitz, o mundo observa hoje o Dia da Memória do Holocausto. No Brasil do extremismo político e da pandemia, a data exige uma reflexão especial.
O assassinato em escala industrial de milhões de judeus, além de outras minorias, foi arrastado ao centro do debate político por apoiadores do presidente Jair Bolsonaro, sobretudo no contexto da pandemia. Um ingrediente nesse caldo nefasto é a relativização do genocídio nazista, usado como arma retórica, “comparável” a supostas vítimas da luta contra a Covid-19.
Outro ingrediente, menos evidente, porém tão pernicioso quanto, é a disseminação da lógica negacionista.
Em sua prática e técnica, os negacionismos histórico e científico são duas faces da mesma moeda. Trata-se, em ambos os casos, de negar fatos bem estabelecidos por evidências, sejam elas resultado de experimentos controlados ou de robusta documentação histórica.
Sofismas contra a vacina se arvoram numa estrutura conhecida. “Não sou antivacina, mas os imunizantes para Covid-19 foram feitos rápido demais, são experimentais, não sabemos seus efeitos de longo prazo, a técnica é muito nova e pode interferir no seu DNA, há interesses da indústria farmacêutica.”
Note a estrutura: pega-se um detalhe que é até verdadeiro, como “foram feitos em tempo recorde”. Remove-se o contexto — a tecnologia básica desenvolvida ao longo de décadas, o esforço, a cooperação e o investimento inéditos trazidos pela pandemia — para encaixá-lo num quadro de conspiração.
Negacionistas do Holocausto argumentavam que a bula do veneno Zyklon-B, usado nas câmaras de gás, mandava ventilar o ambiente por 48 horas após seu uso. Então, como os nazistas poderiam entrar nas câmaras para retirar os corpos sem morrer? Contexto omitido: a bula pressupunha o uso do gás como inseticida, e não (por razões óbvias) para extermínio humano em massa, em galpões vazios e por carrascos com máscaras.
O negacionista, em todas as suas cepas, posa de questionador intrépido ou inocente curioso. Diz o senso comum que quem não tem nada a esconder não teme perguntas. Mas quem questiona querendo conhecer a verdade — e não tentando manipulá-la — ouve as respostas, não insiste na pantomima de que supostos enigmas de soluções bem conhecidas, aceitas pela comunidade de especialistas e reiteradas centenas de vezes, seguem “em aberto”.
Setenta e sete anos depois, há no mainstream brasileiro quem veja equivalência possível entre o judeu na câmara de gás e o dono da pousada. Quem use as ferramentas do negacionismo como arma política contra a promoção da saúde. A eles, repetiremos em uníssono, hoje e sempre: nunca mais.
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