Nos anos 50, um maço de cigarro nas mãos era tão comum quanto um celular é hoje. Foi quando dois pesquisadores ingleses, Richard Doll e Austin Hill, perceberam que os casos de câncer no pulmão cresceram seis vezes no Reino Unido em apenas 15 anos. Suspeitaram do cigarro e iniciaram uma pesquisa que salvaria muitas vidas, mudaria a história da saúde pública e do marketing político.
Para muita gente, a razão do aumento de casos de câncer estava na fumaça de carros, ônibus e caminhões que se multiplicavam com as novas estradas do Pós-Guerra. Como quase todo mundo fumava, inclusive os pesquisadores e os médicos do sistema de saúde, fazia sentido achar um culpado que não questionasse o sagrado ritual do cigarrinho de cada dia.
O estudo publicado em 1954 provou, de forma irrefutável, que fumar aumentava em 16 vezes a chance de desenvolver câncer de pulmão, além de ser também a causa de um surto de doenças cardiovasculares. Os próprios Doll e Hill deixaram de fumar, assim como os médicos, que, expostos a uma avalanche de dados, foram os primeiros a largar o vício.
Parecia ser questão de tempo para o consumo de cigarros diminuir, mas a lógica é frágil quando bate de frente com os interesses de uma indústria bilionária. Com a publicação dessa primeira pesquisa, começou uma guerra de narrativas que duraria décadas. Os executivos da indústria do tabaco se reuniram para discutir como enfrentar a ameaça à saúde de sua galinha dos ovos de ouro: o cigarro. Durante um desses encontros foi criada a arma psicológica que, se injetada nas cabeças da população, ganharia a guerra: a dúvida.
A indústria não atacava os pesquisadores, mas questionava os dados. Contratava outras pesquisas relacionando a poluição à incidência de câncer, ou as doenças cardiovasculares à má alimentação. Profissionais de relações públicas inundando a mídia com resultados conflitantes e com alarmantes pesquisas sobre qualquer outro vilão da saúde que tirasse o foco do cigarro. A nicotina adicionada ao cigarro era uma aliada, fazendo do fumante um dependente ávido por duvidar de qualquer dado questionando o hábito que lhe dava tanto prazer.
Décadas depois, graças a vários vazamentos de documentos secretos, a indústria do tabaco acabou exposta. Produtos criados para criar dependência, dados e índices manipulados levaram os CEOs das companhias ao Congresso americano, onde confessaram, de cabeça baixa, saber, desde os anos 50, do mal que o cigarro provocava. A dúvida se dissipou, fumar virou pecado e foi proibido em espaços públicos.
Turbinada pela chegada das mídias sociais, a maior arma de manipulação de massas já criada, essa estratégia de marketing de combate renasceu nas mãos dos ideólogos e marqueteiros da extrema-direita, prontos para declarar a guerra santa contra o statu quo.
A tática continua a mesma: questionar certezas para criar dúvidas. Negar a ciência, embaralhar dados, reescrever a história, inundar a rede de fake news oferecendo uma realidade paralela a todos os que têm como hobby desconfiar de qualquer fato que contradiga suas próprias opiniões e certezas. O inimigo agora é a imprensa, a academia, a ciência, o liberalismo, todos parte de uma conspiração da elite intelectual de esquerda, que teria como único objetivo o domínio mundial.
A indústria do petróleo e do carvão gerando pesquisas conflitantes com a opinião unânime da comunidade científica sobre a influência do homem no aquecimento global, colocando a pulga da dúvida atrás das orelhas de muita gente e atrasando políticas para a mudança da matriz energética mundial.
O movimento antivacina e seus médicos de Facebook, criando o mito da cloroquina, da vacina com chips da Microsoft, DNA mutante, efeitos colaterais em números astronômicos, minando a confiança da população na única ferramenta disponível para erradicar a pandemia: a vacina.
O marketing da dúvida não conseguiu salvar a indústria do cigarro. Assistindo na CPI às mentiras de ministros sobre a má-fé do governo na condução da pandemia expostas por cartas, documentos, dados e fatos, não tenho dúvida de que, um dia, ser trumpista, negacionista, obscurantista, terraplanista ou bolsonarista será tão constrangedor quanto acender um cigarro num elevador.
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