sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

Acostuma-se

Acostuma-se. Adéqua-se. A vida está se tornando isso: a mistura do preto no branco se transformando em cinza. E quem quiser alguma cor que vá procurá-la em Marte

Suzana não gosta do vestido longo, brilhante, sofisticado; da sandália de salto; mas acostumou-se à ideia, porque é a formatura da prima e ela precisa se adequar à ocasião; além disso, não quer ser presa, pois lhe disseram que é um crime não se apaixonar perdidamente por um vestido tão fashion.

José não concorda com as extravagâncias da mulher, acha-as, inclusive, quase sempre disparatadas; mas acostumou-se aos arroubos, pois espera manter o casamento e necessita se adequar à situação.


Renata maldiz o próprio emprego, abomina-o com todas as forças; mas como a vida é comprida e sempre podemos nos dar ao luxo de nos entregarmos a realidades avessas às nossas crenças internas, decidiu que é mais pertinente engolir a insatisfação com um bule de café e se acostumar à úlcera nervosa.

Carlos não sabe mais lidar sozinho com os sentimentos; quando busca a ajuda dos amigos, porém, recebe apenas recriminações, julgamentos e cobranças; procura adequar-se ao pânico da confusão: não é costume dos homens da família procurar auxílio psicológico profissional.

Alice se desencantou com o curso universitário que escolheu; mas o pai disse que ela não tinha tino para mais nada, que ou continuava ou não teria seu apoio financeiro para outros caprichos. Ela trancafiou as vontades, ruminou a falta de confiança que não se recordava de ter dado causa, e seguiu; acostumou-se ao fato de não poder aliar o futuro trabalho ao gosto particular; hoje acha natural viver amargurada.

Bernardo sempre detestou as preferências dos colegas, mas por medo da rejeição, da ridicularização, da solidão, nunca disse nada a ninguém e permanece apoiando os hábitos da sua pseudotribo, embora sinta os tímpanos reclamarem a cada acorde de música ruim, o cérebro se revoltar a cada assunto fútil, os sentimentos se escandalizarem a cada atitude leviana.

Camila não mais deseja casar. Seu noivo passou a se mostrar agressivo e eles não têm a mesma conexão do início do namoro. Mas a casa foi comprada, os padrinhos escolhidos, o sonho projetado. As irmãs pressionam, o pai ameaça, a mãe chantageia; tudo isso a leva a pensar que é sua obrigação dar o devido direcionamento ao tempo de namoro e às expectativas das pessoas. Já prevê um acinzentado futuro e está se acostumando a ele.

Guilherme, quando criança, frequentou metade dos cursos existentes no universo; sem tempo suficiente para brincar, para dar ou receber amor. Perfeito estereótipo de uma sociedade que cria pequenos gênios e grandes depressivos. Foi moldado pelo que ouviu: que precisava ser o melhor. Hoje luta para se adequar à montanha de ansiolíticos e fica feliz quando consegue dormir duas horas por noite.

Acostuma-se. Adéqua-se. A vida está se tornando isso: a mistura do preto no branco se transformando em cinza.

E quem quiser alguma cor que vá procurá-la em Marte.

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