segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020

Quem tem medo do papangu?

Hoje é segunda-feira de carnaval. Estamos em pleno reinado de Momo, quando a irreverência, o excesso e o risco tomam conta das pessoas. Como bom pernambucano, sempre levei o carnaval muito a sério. Lembro, ainda criança, brincando carnaval pelas ruas estreitas do centro do Recife e pelas ladeiras íngremes de Olinda, de várias figuras então “ameaçadoras” do carnaval de Pernambuco. Logo de manhã cedo, ouvia troças carnavalescas com suas orquestras de frevo ou simplesmente batedores de lata. À frente, alguém fantasiado de urso, vestindo um velho macacão de veludo e com uma máscara de papel marche, gritava: “a La Ursa quer dinheiro, quem não dá é pirangueiro!”.

No Pátio do Terço, à meia-noite da segunda-feira de carnaval, participava da “Noite dos Tambores Silenciosos”, cerimônia de sincretismo religioso que reúne maracatus da região. O que mais me causava espanto era o maracatu “de baque solto”, formado por canavieiros da zona da mata com sua cútis curtida pelo sol. Esses “caboclos de lança” vestem fantasias coloridas, com sinos de metal pendurados nas costas que soam de forma ritmada a cada movimento. Carregam lanças enormes e dançam como verdadeiros ninjas do canavial.


Entretanto, as figuras mais amedrontadoras do carnaval de Pernambuco eram os enigmáticos papangus, cuja definição é homem ridículo, sem compostura, tolo, mané ou otário. Se fantasiam com túnicas que os cobrem dos pés à cabeça, com abertura apenas para olhos e boca. Os mais famosos vêm de Bezerros, no agreste pernambucano. Quando se ouve de longe o barulho das castanholas que anunciam sua chegada, todas as crianças morrem de medo. Acredita-se que o papangu nasceu de uma brincadeira de dois irmãos que comiam muito angu. Resolveram cortar as pernas das calças e cobrir o rosto com capuz para não serem reconhecidos, mas o disfarce não funcionou. Terminaram descobertos pela gula.

Assim como as crianças do Recife, uma boa parte da sociedade brasileira tem temido um enfraquecimento democrático, se deixando atormentar por um papangu com jeito autoritário, que elogia torturadores, ameaça fechar o STF e decretar um novo AI-5, tenta reinterpretar a história dizendo que o regime militar de 1964 não foi uma ditadura, pois não matou o suficiente para extirpar o comunismo. Esse papangu também assusta ao perder o decoro difamando jornalistas, ao dar banana a repórteres, ultrapassando, assim, os limites da boa convivência democrática. Sem maioria legislativa estável, esse personagem é necessário para manter o apoio de seu eleitorado mais retrógrado.

Independentemente da capacidade das instituições políticas e dos sistemas de freios e contrapesos de conter os arroubos autoritários do nosso papangu, as evidências científicas disponíveis (Przeworski e Limongi 1997) mostram, de forma inequívoca, que a chance de reversão da democracia em países com a renda per capita superior à da Tailândia de 2006 (US$ 10 mil) é zero. Vale lembrar que a renda per capita no Brasil é superior a US$ 15 mil.

Outro fator crucial de estabilidade democrática é sua maturidade. Przeworski (2015) demonstra que a probabilidade de uma democracia ruir diminui drasticamente ao mesmo tempo em que o país acumula experiências de alternância de poder de forma pacífica e por meio de eleições. Entre 88 democracias consolidadas, apenas uma em cada dez entrou em colapso quando não testemunhou mais de três alternâncias, e apenas uma (Chile) caiu quando o número de alternâncias passadas chegou a quatro. O Brasil já possui seis alternâncias desde a redemocratização.

Mas, mesmo diante das evidências de que nossa democracia permanece sólida, a sociedade e suas instituições não devem baixar a guarda e diminuir a vigilância a cada afronta à democracia vinda do nosso papangu.

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