segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020

Como vai ser o Carnaval à moda de Bolsonaro

A pastora evangélica que, um dia, afirmou ter visto Jesus Cristo em cima de uma goiabeira e agora desempenha as funções de ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos do Brasil não gosta do Carnaval por se tratar de uma festa pagã. Assim, é natural que Damares Alves tenha escolhido o mês de fevereiro para iniciar uma campanha a promover a abstinência sexual entre os jovens. É nesta quadra de folia e de excessos que a maioria dos brasileiros vai para as ruas celebrar o rei Momo, e o Governo “conservador e cristão” liderado pelo Presidente Jair Messias Bolsonaro considera uma prioridade reduzir a gravidez precoce, porque o país apresenta uma das taxas mais elevadas do mundo no que toca à maternidade entre adolescentes.


Em entrevista ao jornal Correio Braziliense, no final do mês passado, a ministra explicou-se: “A gente quer mais do que uma campanha; a gente quer começar a conversar sobre isso; a gente quer que isso seja uma coisa permanente, de modo que todas as vezes que uma professora falar de preservativo ela também fale ‘olha, vamos pensar duas vezes antes de transar?’. É só uma frase! É só sentar com esse menino e conversar.” Declarações que ela tem repetido publicamente, sempre que pode. “Existe uma pressão social para as meninas iniciarem as práticas sexuais muito cedo. Existe até bullying contra as virgens”, garantiu à agência Lusa a governante, que já admitiu ter sido violada em duas ocasiões, quando era menor.

Só que Damara Alves tem sido arrasada por invocar e manipular estatísticas, ao mesmo tempo que se esforça, nas entrevistas e nas redes sociais, para sublinhar que as suas intenções não passam por “impor condutas morais ou religiosas” e que pretende apenas adotar “estudos e pesquisas científicas sérios” que já deram bons resultados. Só que nenhum destes últimos exemplos por si apresentados – nomeadamente, dois relatórios sobre o Chile e o Uganda – convencem, por contrariarem as melhores recomendações académicas e terapêuticas. A Sociedade Brasileira de Pediatria, a Rede Feminista de Ginecologistas e Obstetras e ainda a Defensoria Pública da União (entidade equivalente à portuguesa Provedoria de Justiça) acusam a ministra de “pregar a abstinência e deixar de fornecer informação adequada sobre saúde reprodutiva e sexual”, algo que coincide com a agenda puritana de Bolsonaro, até em termos internacionais. Afinal, desde a tomada de posse do antigo capitão que o Brasil, na ONU e na Organização Mundial da Saúde, tem vetado tudo o que diga respeito à educação sexual, à interrupção voluntária da gravidez ou às doenças sexualmente transmissíveis, por considerar que isso são temas do “marxismo cultural” contemporâneo que é urgente combater.

O chefe de Estado, um antigo católico que em 2016 se fez batizar como evangélico em Israel, já veio defender Damares Alves e a campanha intitulada “Eu escolhi caminhar”: “Tenho uma filha de 9 anos. Você acha que eu quero a minha filha grávida no ano que vem?” Segundo o Presidente e respetivos colaboradores, é preciso acabar com a erotização dos adolescentes e com a “depravação total” que Lula da Silva, Dilma Rousseff e o Partido dos Trabalhadores supostamente promoveram desde que chegaram ao poder em 2003. Para o antigo militar, a “moral e os bons costumes” têm de ser incondicionalmente defendidos pelos pais de família, e não é admissível que haja escolas a discutir sexo para “perverter” os estudantes. A escritora e psicanalista Maria Rita Kehl, na emissora radiofónica Brasil Atual, afirmou que o puritanismo presidencial parece uma cruzada de outros tempos: “O Brasil está sendo catequizado como os índios foram no século XVI.”

No ano passado, por esta altura, Bolsonaro fez questão de instrumentalizar a quadra carnavalesca para se apresentar como um paladino dos bons costumes e sugerir que os festejos em honra do rei Momo tinham convertido o Rio de Janeiro ou Salvador da Bahia em modernas Sodomas e Gomorras: “Não me sinto confortável em mostrar, mas temos que expor a verdade para a população ter conhecimento e sempre tomar suas prioridades. É isto que tem virado muitos blocos de rua no Carnaval brasileiro. Comentem e tirem suas conclusões [sic].” Esta sua mensagem no Twitter vinha acompanhada de um vídeo que se tornaria polémico e viral, devido às imagens de um grupo de homossexuais que se acariciavam e urinavam uns sobre os outros, num palanque em São Paulo. Graças à estratégia de Bolsonaro, mais de três milhões de brasileiros passaram então dias inteiros a discutir os golden showers e a forma como deve ser celebrado o Carnaval.

Agora, a história pode vir a repetir-se. Os aliados e apoiantes do Presidente continuam a afirmar que as atividades carnavalescas não deveriam receber um único real do erário público e que esse dinheiro deveria ser aplicado na Saúde e na Educação. Uma posição claramente demagógica, se tivermos em conta que a generalidade das escolas de samba e dos organizadores dos festejos já só conta com verbas privadas ou resultantes de peditórios. O que se passa na Cidade Maravilhosa serve de exemplo.

O presidente da autarquia do Rio de Janeiro, ex-bispo da IURD, evangélico criacionista e negacionista ambiental Marcelo Crivella, eleito há três anos, tem vindo a complicar cada vez mais a vida aos foliões. Após cortes drásticos nos seus primeiros três orçamentos, este ano a prefeitura fluminense decidiu não dar rigorosamente nada para o grande festejo, que começou oficialmente a 12 de janeiro e se prolonga até 1 de março, no qual devem participar 1,9 milhões de turistas. Mas a estratégia de Crivella não passa apenas pela tentativa de estrangulamento económica da mais popular festa carioca.

Além de ignorar ou desvalorizar os ataques de milícias conservadoras a terreiros de candomblé e às instalações das escolas de samba, a autarquia aprovou, em dezembro, um conjunto de medidas para condicionar e restringir a atuação dos grupos carnavalescos – os blocos. Dos 543 que solicitaram autorização de Crivella para desfilar nas ruas, dezenas já revelaram não ter condições para cumprir as normas de higiene e segurança que lhes foram exigidas. E, pelo menos, quatro foram já multados por terem excedido a quantidade máxima de lixo que lhes era permitido fazer, tendo agora de pagar multas que podem ascender a dez mil reais (cerca de 2 100 euros).

Por outro lado, o Governo espera que a atual epidemia gripal com origem na China também refreie os foliões. Na última semana, o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, apelou aos seus compatriotas para que tenham “etiqueta” e um “comportamento adequado”, de modo a evitar doenças contagiosas e sexualmente transmissíveis. O Brasil já descartou quatro dezenas de casos suspeitos de coronavírus, e 58 pessoas encontram-se, neste momento, de quarentena na Base Aérea de Anápolis, no centro do país, após terem sido repatriadas da província chinesa de Wuhan. Mas esse não é o único desafio sanitário que as autoridades enfrentam. O número de infetados com a síndrome da imunodeficiência adquirida, vulgo VIH/sida, aumentou 18% nos últimos cinco anos e o país registou quase 31 mil casos de dengue entre 29 de dezembro e 18 de janeiro, com cinco mortes confirmadas. Vários comentadores brasileiros têm dito e escrito que a vaga puritana de Bolsonaro e o medo do coronavírus jamais conseguirão comprometer o espírito carnavalesco. Com maior ou menor humor, as escolas de samba prometem agora redobrar as críticas ao Presidente e à classe política. A Mangueira, vencedora do desfile de 2019, já fez saber que apresentará um programa dedicado a um Jesus Cristo de rosto negro, sangue índio e corpo de mulher, “sequestrado pelos profetas da intolerância”.

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