quinta-feira, 10 de outubro de 2019

Um Cristo amazônico... e mulher?

Dizem que Deus tem senso de humor. Para alguns, um senso de humor bastante estranho. Talvez isso explique como num mundo povoado por déspotas de direita —Donald Trump, Jair Bolsonaro, Viktor Orbán, Recep Erdogan, Rodrigo Duterte etc— e de esquerda —Daniel Ortega e Nicolás Maduro—, aquele que desponta como o mais importante defensor da democracia, da igualdade e da diversidade seja justamente o representante de uma instituição paquidérmica e com um passado bastante tenebroso. Papa Francisco é puro alento para quem testemunha o autoritarismo se alastrar pelo mundo. Em especial quando faz um discurso como o da abertura do Sínodo da Amazônia, no domingo de 6 de outubro: “Deus nos preserve da ganância dos novos colonialismos. O fogo ateado por interesses que destroem, como o que devastou recentemente a Amazônia, não é o do Evangelho. O fogo de Deus [...] alimenta-se com a partilha, não com os lucros. [..] O fogo devorador alastra quando se quer fazer triunfar apenas as próprias ideias, formar o próprio grupo, queimar as diferenças para homogeneizar tudo e todos”. O recado é claro como água benta. Expressa também o anseio de que o Sínodo da Amazônia seja “histórico” e marque um reposicionamento da Igreja Católica, o que tem assustado desde bispos e fiéis ultraconservadores até o antipresidente Jair Bolsonaro (PSL), seus generais, grileiros e exploradores da Amazônia.

Fazia muito tempo que uma reunião da Igreja Católica não recebia tanta atenção. Tanta que até nos interiores de Mato Grosso do Sul surgiram outdoors: “Por Igrejas Sem Partido: Não ao Sínodo da Amazônia”, numa paródia com o projeto ideológico “Escola Sem Partido”, que busca censurar conteúdos e professores nas escolas. Bolsonaro e seus generais colaboraram bastante para aumentar as expectativas referentes ao Sínodo, ao considerarem o encontro uma ameaça à soberania nacional, admitirem que a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) está monitorando a reunião e forçar a diplomacia brasileira a passar o vexame de pedir para o governo participar – e ouvir um “não” como resposta.

O Sínodo da Amazônia foi idealizado quando a ideia de Bolsonaro ser presidente do Brasil era só uma piada ruim. Sua concepção surgiu tanto do conhecimento do Papa Francisco sobre o papel da maior floresta tropical do mundo na emergência climática quanto da percepção dos bispos da região da acelerada destruição do bioma e de seus povos. No Brasil, a devastação e as políticas contra as populações da floresta já tinham avançado nos governos de Dilma Rousseff (PT) e se acelerado com Michel Temer (MDB). Com Bolsonaro, têm alcançado níveis de tragédia. O aumento dos alertas de desmatamento e dos incêndios em 2019 colocaram o planeta em estado de alarme, gerando uma crise internacional e dando um significado ainda maior para o Sínodo.


Por obra e graça do Papa, a Amazônia estará no noticiário até pelo menos 27 de outubro, quando a reunião que reúne 185 bispos, 57 deles brasileiros, além de especialistas e convidados, será encerrada com um documento que irá balizar e sustentar a atuação da Igreja Católica na região. Embora a Amazônia se espalhe por nove países, é o Brasil que abriga 60% da floresta e é o Brasil que tem um governante cujo principal projeto é abrir a floresta para a exploração predatória, gerando uma crise internacional após outra.

Em seu discurso na abertura da Organização das Nações Unidas, Bolsonaro chegou a atacar Raoni, um dos maiores líderes indígenas do país, indicado para o Nobel da Paz, assim como negar as chamas que o mundo inteiro testemunhou por imagens. O pânico que a irresponsabilidade violenta de Bolsonaro tem provocado multiplicou a atenção do planeta para o Sínodo e emprestou ao Papa Francisco luzes ainda mais celestiais em meio às trevas do autoritarismo.

O documento “Instrumentum Laboris”, elaborado para orientar os debates do Sínodo a partir da consulta a mais de 80 mil pessoas na Amazônia, defende exatamente o oposto do que é a política do governo brasileiro para a floresta. E reivindica um outro tipo de desenvolvimento, colocando a Amazônia no centro e os povos da floresta como protagonistas. Enquanto o Bolsonaro quer assimilar os indígenas para mudar a Constituição e abrir as terras hoje públicas e protegidas para terras para exploração e lucros privados, o Sínodo propõe um Cristo com “face amazônica”. Um dos principais caminhos seria a "interculturação", uma ideia de que a Igreja deve se abrir para os conhecimentos dos povos indígenas e ser mudada por estas outras experiências de ser e de apreender o mundo. Uma espécie de multiculturalismo ao modo do Vaticano.
Opressores ou neocolonizadores é o nome dado àqueles que defendem um determinado modelo que oprime as pessoas ou destrói o planeta. O que acontece hoje em dia é que algumas opressões são um pouco mais sutis. Assim, muita gente acredita que não seriam opressores, porque supostamente estariam promovendo um determinado modelo de agroindústria, o que traria benefícios para o país. Nós dizemos: isso é exploração
A ideia da Amazônia como “Casa Comum”, propagada pelo Papa Francisco, é compartilhada pela juventude que protagoniza os grandes protestos pelo clima, inspirada pela adolescente Greta Thunberg. A ativista alertou que “Nossa casa está em chamas”, referindo-se à emergência climática vivida pelo planeta, muito antes de o presidente francês Emmanuel Macron usar uma frase similar para referir-se aos incêndios da Amazônia, o que provocou ataques de Bolsonaro que viu na afirmação uma “ameaça à soberania”. O documento que resultará de 21 dias de debates deverá ser levado em dezembro à Cúpula do Clima, no Chile, esta que Bolsonaro não quis que acontecesse no Brasil.

O Papa está afinado com sua época e compreendeu antes da maioria das pessoas públicas do mundo que o grande desafio é o clima. Para isso precisa escolher desafinar dos déspotas que se alastram como peste e, ao mesmo tempo, empurrar uma Igreja que se move muito lentamente para um papel de vanguarda. O Papa parece ter entendido que o tempo mudou. Em todos os sentidos. Se sua Igreja entendeu é o que veremos.

Os idealizadores do Sínodo da Amazônia têm a ambição de que a reunião possa significar um marco histórico para o reposicionamento da Igreja Católica, um novo momento de “opção pelos pobres” a partir da Amazônia e da crise climática. Também o Papa propõe um deslocamento da Amazônia para o centro, lugar que ela obrigatoriamente ocupa, mas que não é nem compreendido nem reconhecido por governantes e também por parcelas da população.

O Sínodo tem ainda o desafio de solucionar problemas bem urgentes da própria Igreja Católica na região amazônica, como a crescente e acelerada perda de fieis para as igrejas evangélicas, em especial as neopentecostais. Segundo pesquisa do Datafolha, a região é a única em que há o mesmo número de católicos e de evangélicos no Brasil. No restante do país, os católicos ainda são maioria, mas diminuindo a cada pesquisa. No Xingu, por exemplo, há 800 comunidades e apenas 30 padres, a maioria com mais de 65 anos e dificuldades para se deslocar numa região difícil. Entre os temas mais espinhosos do Sínodo está a possibilidade de abrir espaço para a ordenação de homens casados, com “uma vida cristã exemplar”, o que tornaria possível que indígenas pudessem se tornar essa figura inédita. Se isso acontecer, a Igreja Católica pode mudar a correlação de forças com os evangélicos e aumentar sua presença desde dentro, o que é uma mudança enorme para quem acompanha a trajetória desta instituição de dois milênios.

A Igreja Católica também tem sofrido grande pressão para reconhecer a importância das mulheres, abrindo mais espaço formal para elas, como a possibilidade de presidir a eucaristia. O protagonismo das mulheres é um fato na Amazônia brasileira, onde elas já lideram uma parcela significativa dos movimentos sociais e das comunidades. As freiras costumam estar muito mais presentes e inseridas no cotidiano e nas lutas que os padres. É raro encontrar um movimento de emancipação que não tenha uma freira ocupando um lugar chave. Lacrar os olhos para a realidade explícita, recusando às mulheres a necessária resposta oficial, é uma estupidez que tem custado caro à Igreja Católica. Uma estupidez, porém, que é abraçada com adoração pelos católicos ultraconservadores, como se pode perceber pela sua reação carregada de rancor às propostas de inovação do Sínodo. Estes dias de outubro no Vaticano podem mostrar que pode ser mais fácil conferir feições amazônicas a Cristo do que dar a ele um rosto de mulher.

O Sínodo da Amazônia pretende – e vai – afetar muito mais do que o mundo católico. Para nos ajudar a compreender o que está em debate, entrevistei o padre argentino Augusto Zampini-Davies, hoje diretor de Desenvolvimento e Fé do Dicastério para a Promoção do Desenvolvimento Humano Integral, no Vaticano. Um dos especialistas que elaborou o “Instrumentum Laboris”, documento que deu as diretrizes e conduz os debates no Sínodo, aos 50 aos ele é também um dos mais influentes teólogos que representam e difundem o pensamento do papado de Francisco. Formado em Direito, filho de tradicional família argentina, antes de ser padre e se tornar um PhD em Teologia, trabalhou com bancos e multinacionais, o que teria dado a ele o conhecimento profundo de como negociam os que hoje com frequência combate. Segundo a imprensa italiana, recebeu “o chamado para mudar” numa viagem com a namorada. E mudou.
Leia a entrevista de Eliane Brum com o padre Augusto Zampini-Davies, diretor de Desenvolvimento e Fé do Dicastério para a Promoção do Desenvolvimento Humano Integral, no Vaticano

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