O ambiente político tornou-se tenso, com notícias desencontradas de todos os lados: haveria resistência da população? O Governo deposto conseguiria reagir ao golpe de Estado? Diante do clima de insegurança e da incerteza sobre seu futuro no ministério, Paulo pediu à mãe que levasse os filhos dele para Recife, onde mantinha uma casa. Providências tomadas, ele e a esposa, Elza, permaneceram em Brasília, levando uma vida reservada na casa de amigos. Queriam ser notados o mínimo possível.
Ao extinguir o Programa Nacional de Alfabetização, os militares respondiam às pressões de parcela conservadora da sociedade brasileira que atacava e desqualificava o trabalho de Paulo Freire. As denúncias passaram a ser instrumento de luta dos partidos políticos que apoiavam o golpe contra as siglas ligadas ao ex-presidente João Goulart. Paulo viu sua situação se tornar cada vez mais complicada.
Condenação do método
Na Câmara dos Deputados, políticos conservadores se revezavam na condenação permanente de seu método de alfabetização. Em 18 de abril, o deputado Emival Caiado, do partido conservador União Democrática Nacional (UDN), denunciou Mauro Borges, então governador de Goiás e aliado do ex-presidente Jango, de implantar o comunismo no Estado: “O método comunizante do sr. Paulo Freire teve entusiástica acolhida do Governo goiano. O sr. Mauro Borges deu total e completa cobertura a órgãos estudantis dominados por comunistas”. Caiado concluiu, aos brados: “Não creio que em nenhum outro Estado o comunismo tenha se infiltrado tanto!”.Intensamente debatido como uma questão social das mais relevantes, o analfabetismo exigia dos militares uma resposta rápida, algo concreto que pudesse ser contraposto ao que vinha sendo feito nos anos anteriores. Em 15 de maio, os jornais Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo repercutiram a proposta apresentada pela vereadora paulistana Dulce Salles Cunha Braga ao novo ministro da educação, Flávio Suplicy de Lacerda. Figura ativa na articulação do golpe, a advogada e professora afirmava poder erradicar o analfabetismo no Brasil em apenas oito meses. Denominado “Alfabetização para massas”, seu método teria se mostrado bastante eficiente ao ser aplicado a partir de veiculação na rádio Record, no estado de São Paulo. Dulce propunha, com base nessa experiência, uma cartilha a ser distribuída pelo MEC, com apoio radiofônico do pro- grama A voz do Brasil, a fim de alcançar todo o território nacional. Segundo o jornal O Estado de S. Paulo, uma nova versão da cartilha já estaria pronta para divulgação imediata, com leituras retiradas do “ideário democrático, numa espécie de réplica ao modelo comunizante do método Paulo Freire”. O ministro Suplicy de Lacerda respondeu que analisaria a proposta com atenção e que logo se manifestaria.
Ao mesmo tempo, também o debate sobre o voto do analfabeto voltou à tona nos meses que se seguiram ao golpe militar. Em um país que historicamente proibia o voto aos iletrados, o Programa Nacional de Alfabetização representava uma ameaça aos redutos políticos cativos nas eleições seguintes. Em Sergipe, por exemplo, o Programa permitiria acrescer 80 mil eleitores aos 90 mil já existentes. Da mesma forma, em Recife, a iniciativa praticamente dobraria a quantidade de eleitores, elevando de 800 mil para 1,3 milhão o número de títulos. Projetados no cenário nacional, os exemplos demonstravam como o método do professor Paulo Freire, que propunha alfabetizar um iletrado em 40 horas, poderia alterar a correlação das forças políticas.
Como o programa de alfabetização, a questão do voto dos analfabetos também estava em debate e exigia uma resposta do novo governo. O marechal Humberto de Alencar Castello Branco, primeiro militar a assumir a presidência depois do golpe, encaminhou ao Congresso Nacional uma proposta de mudança tímida, que estendia o voto aos iletrados apenas nas eleições municipais — e de maneira facultativa. Ainda assim, a proposição foi derrotada, em parte pelo pouco empenho da bancada governista, fazendo crer que a medida era mero jogo de cena.
Intensiva propaganda comunista
Em sua edição de 30 de junho de 1964, o jornal O Estado de S. Paulo publicou um artigo de Antônio Bernardes de Oliveira, médico, professor universitário e membro da Sociedade de Medicina e Cirurgia de São Paulo, intitulado “O voto do analfabeto, um desserviço à Nação”. O autor argumentava que tal possibilidade “só pode interessar ao demagogo e ao oportunista sem escrúpulos; não corresponde a nenhuma aspiração nacional; anula e avilta o voto consciencioso e de qualidade; compromete o regime; afasta as elites legítimas; reduz o papel dos partidos; convida ao suborno; nivela por baixo”. Sobre o método de Paulo Freire, em sua opinião adotado pelo governo deposto apenas para ampliar o colégio eleitoral, Bernardes de Oliveira dizia não passar de “uma manobra para alcançar dois escopos, uma intensiva propaganda comunista e a eclosão de uma invencível força eleitoral de índole facciosa onde a demagogia teria as portas abertas”.Em Brasília, Paulo assistia a tudo com discrição. Elza já havia voltado para Recife para ficar junto aos cinco filhos do casal — Madalena, a mais velha, com dezoito anos, seguida por Cristina, Fátima, Joaquim e o caçula Lutgardes, então com cinco anos. Através de um intermediário com contatos entre os militares, Paulo sondou o então chefe do Gabinete Militar, o general Ernesto Geisel, e o general Antônio Carlos Muricy, comandante da 7ª Região Militar, se haveria algum impedimento para que deixasse Brasília e se juntasse à família. Quando soube que não, embarcou imediatamente para Pernambuco.
Chegando em Recife, tratou de retomar suas atividades acadêmicas e seus escritos, que havia deixado de lado com a mudança para Brasília. Paulo conquistara alta visibilidade a partir de 1963, quando encampou uma experiência de alfabetização em Angicos, no Rio Grande do Norte, trabalho desenvolvido com a equipe do Serviço de Extensão Cultural (SEC) da Universidade de Recife. Ali, 300 jovens e adultos participaram de seu processo de alfabetização em 40 horas. Amplamente propagandeados pelo governo estadual, os bons resultados levaram João Goulart a se deslocar de Brasília até o interior potiguar para participar do encerramento do curso. Com o sucesso e a repercussão da iniciativa, Paulo foi convidado pelo Ministério da Educação e Cultura a estender o trabalho para todo o país. Aceitou a proposta e se mudou com a família para Brasília. Em junho de 1963, começou a trabalhar na formação de futuros coordenadores dos núcleos de alfabetização, que seriam implantados em praticamente todas as capitais. Só no estado da Guanabara, cerca de 6 mil pessoas se inscreveram naquela ampla mobilização nacional pela educação, que seria interrompida pelos militares em abril do ano seguinte.
De volta a Recife, Paulo se apresentou voluntariamente à Secretaria de Segurança Pública e constatou que não havia qua quer ordem de prisão contra ele. Foi informado, no entanto, de que poderia ser chamado para depor a qualquer momento.
Intimidação durante a ditadura
O clima de intimidação era geral. As universidades e demais instituições de ensino público seriam afetadas diretamente pelos Atos Institucionais, que davam poder aos militares a partir de comissões de investigação instauradas para averiguar opositores, cassar mandatos políticos, destituir de cargos e retirar o direito ao voto. Com o objetivo declarado de voltar a integrar os alunos “na sua tarefa precípua de estudar e os professores na sua missão de ensinar”, as medidas estabeleciam um rígido controle sobre o universo estudantil com a pretensão de coibir os crescentes protestos e manifestações.Atendendo às orientações impostas pelo Ato Institucional nº1, de 9 de abril de 1964, João Alfredo, reitor da Universidade de Recife, em que Paulo trabalhava, convocou uma reunião do Conselho Universitário para o dia 27 de abril. Decidiu-se instalar uma comissão de professores para apurar responsabilidades de docentes e servidores na “prática de crime contra o Estado e seu patrimônio, a ordem política e social, ou atos de guerra revolucionária”, conforme rezava a portaria. Essa co- missão deveria abrir rapidamente sindicâncias e analisar documentos a fim de elaborar relatórios para o reitor.
Paulo foi interrogado sobre sua atuação na universidade. A comissão solicitou que os esclarecimentos necessários à sua defesa lhe fossem passados por escrito. Os dias seguintes foram dedicados a produzir um documento descritivo de seu trabalho, em resposta às dezoito perguntas encaminhadas a ele. Paulo aproveitou para tecer considerações pessoais, indignado com a evolução dos fatos na instituição de ensino e no país. O documento seria entregue no dia 25 de maio. Ao esclarecer que atuava no SEC desde sua implantação, em 1962, Paulo chamava a atenção para o fato de ser amigo do reitor, a quem tinha o dever de lealdade: “Aprendi com meu pai e com minha Igreja que a lealdade, a coragem e a honradez, a retidão não podem ser desprezadas pelo homem, sob pena de se desprezar a si mesmo, e deixar de já ser homem”. O documento respondia às perguntas enumerando as atividades realizadas nos dois anos anteriores. Paulo mencionou que havia sido convidado pelo então ministro Paulo de Tarso para coordenar um programa nacional de educação para adultos, e não simplesmente de alfabetização. E que entendia o convite como honroso não só para ele, mas também para a universidade. Por isso havia exigido que o trabalho ocorresse por meio do SEC, em convênio do ministério com a Universidade de Recife, na qual continuaria com suas pesquisas regulares.
Atividades consideradas subversivas
Em relação às críticas da imprensa recifense sobre suas atividades, tachadas de subversivas ou propagadoras de ideias contrárias ao regime democrático, respondeu que não só tinha conhecimento do que se dizia na cidade “mas também em todo o Brasil e que a leitura dessas críticas lhe servira para fazer um verdadeiro curso de como se pode, por ignorância, má-fé, ou outras coisas quaisquer, distorcer o pensamento dos homens”. Em contrapartida, destacou a valorização e o apoio ao trabalho do SEC em artigos e depoimentos de nomes como o do sociólogo Gilberto Freyre e do professor Walter Costa Porto. Paulo fez referência também à Comissão de Educação e Cultura da Câmara dos Deputados, em Brasília, onde estivera para dar uma conferência que, seguida de debate, gerou muitos elogios ao seu trabalho. Todas essas pessoas, observou, não eram comunistas nem estavam interessadas em comunizar o país — e justamente por isso apoiavam o que estava sendo feito. Escreveu que não podia deixar de rir quando o acusavam de “lavador de cérebros”, pois a essência da sua teoria pedagógica era alérgica a regimes totalitários: “Nego, pois, a vera- cidade das acusações assacadas contra o SEC, anteontem, on- tem e hoje. Nego que o SEC […] exerça atividades subversivas ou contrárias ao regime democrático. Horroriza-me o assanhamento destas acusações”.
Em suas considerações finais, Paulo faria uma defesa intransigente da alfabetização de adultos. Escreveria: "Há até quem diga que não adianta alfabetizarmos esses 36 milhões de brasileiros porque talvez 'papagaio velho não aprende a ler'. Como se estas legiões de analfabetos não constituíssem, para nós, seus irmãos letrados, uma prova de nosso desamor. De nossa incúria. De nosso fracasso. Nunca pretendemos ser os donos da alfabetização nacional. Há analfabetos demais. […] Se tudo o que dissemos em nossa defesa pessoal e na defesa do SEC a ninguém convencer, paciência. Salvem-se, porém, os analfabetos".
Entregue o documento, Paulo ficou à espera do parecer da comissão e de como o Ministério da Educação e Cultura reagiria frente ao declarado. Cerca de três semanas depois, em 16 de junho, dia do aniversário de Elza, estava em casa trabalhando na reescrita para publicação de sua tese Educação e atualidade brasileira quando dois agentes bateram à sua porta e pediram para que os acompanhasse. Sem imaginar o que viria, vestiu-se, tomou um café, despediu-se da esposa e seguiu com os policiais. No trajeto, passaram pela Secretaria de Segurança Pública, pela polícia e de lá seguiram para o quartel do 4º Exército. Apresentado ao capitão de plantão, foi fichado e detido — sem nenhuma peça de roupa ou objeto de higiene pessoal, nenhum livro para acompanhá-lo. Paulo não tinha imaginado que de fato pudesse ser preso.
Duas semanas depois, em 1º de julho, prestou novo depoimento sobre suas “atividades subversivas antes e durante o movimento de 1º de abril, assim como suas ligações com pessoas e grupos de agitadores nacionais e internacionais”, agora em inquérito policial militar chefiado pelo tenente-coronel Hélio Ibiapina Lima. Duro nos interrogatórios, em 2014 Ibiapina Lima foi apontado no relatório final da Comissão Nacional da Verdade, junto a outros 376 agentes do Estado, por violação dos direitos humanos e crimes cometidos durante o regime militar.
O tenente-coronel iniciou o interrogatório pela formação e pelas atividades profissionais de Paulo; questionou-o em seguida sobre inúmeros autores e seus métodos pedagógicos: Dalton, Montessori, Mackinder, Decroly, Kilpatrick, Peter- sen, Cousinet, Laubach, Alfredina de Paiva e Souza, sintético, analítico-sintético… Surpreso, Paulo respondeu sobre aqueles que conhecia, afirmou que, em sua maioria, eram integrantes de uma pedagogia moderna, defensora de uma educação ativa na qual o educando pudesse superar a passividade característica da escola antiga e assumir uma posição participante em seu aprendizado.
Na sequência viriam perguntas para testar seu conhecimento específico sobre os autores e métodos apresentados, os resultados que produziram, onde foram aplicados. Depois, sobre sua avaliação dos sistemas de ensino adotados pelo Exército dos Estados Unidos e do Brasil a partir de 1941. Em seguida, Paulo foi questionado sobre a diferença entre sua visão pedagógica e a perspectiva de cada um dos outros educadores citados. E, finalmente, sobre o seu método de aprendizado — destinava-se apenas à alfabetização ou ao ensino de maneira geral?
Em relação ao último questionamento, Paulo se deteve mais pacientemente, explicando com didatismo para Ibiapina Lima que sua principal preocupação era educar, e não só alfabetizar. Esclareceu que era um método baseado no diálogo, que abordava situações da vida cotidiana e pretendia fazer com que os alunos se tornassem pessoas ativas a partir das discussões sobre o contexto em que viviam. Descreveu os procedimentos para a escolha das palavras, o modo como elas eram decompostas em sílabas que depois se juntavam em outras combinações para construir novas palavras. Para concluir, disse que todo seu trabalho educativo se fundava no absoluto respeito ao ser humano e que o importante era educar, não doutrinar.
Nesse momento do inquérito, tendo ouvido Paulo com atenção, Ibiapina Lima tornou-se mais agressivo; perguntou como ele poderia se considerar um educador se demonstrava desconhecer parte dos teóricos citados. Paulo argumentou que não lhe cabia julgar a si próprio e que não tinha nada a acrescentar sobre os demais autores.
O tenente-coronel então fez referência à duração do método de alfabetização de Paulo Freire, questionou o porquê das 40 horas — rapidez tão alardeada pelos meios de comunicação. A busca por uma solução ágil, respondeu Paulo, era necessária porque o problema era muito grave, e argumentou que a alfabetização deveria ser aprofundada em fases subsequentes. Quanto à originalidade de seu trabalho, afirmou que não tinha pretensões de ser original, mas de dar sua contribuição ao combate do analfabetismo.
Ibiapina Lima então questionou Paulo sobre seu suposto envolvimento com o comunismo ou com regimes totalitários, comparando seu método àqueles utilizados por Hitler, Mussolini, Stalin e Perón. Quis saber também sua opinião a respeito de Cuba, da União Soviética e da China. E o que pensava sobre Brizola, Miguel Arraes, Luís Carlos Prestes, Francisco Julião e Gregório Bezerra. Em uma guerra entre o Brasil e um país comunista ou socialista, de que lado Paulo estaria? Paulo se defendeu de todas as perguntas. Constrangido pelas circunstâncias, repudiou o comunismo, expressou-se como apoiador das reformas do marechal Castello Branco, mostrou-se satisfeito com sua liderança, negou vontade de deixar o país e, por fim, colocou-se na condição de cristão que valorizava o ser humano e que se orientava pela doutrina da fé. Depois de horas de tensão e afrontamento, pôde enfim voltar para a cela. Dois dias depois, em 3 de julho, foi solto.
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