segunda-feira, 12 de agosto de 2019

A República tutelada. Mas quem é o tutor?

Era noite de 23 de outubro de 2018, faltando alguns dias para o segundo turno, e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) rodava na voltagem máxima. Saíra havia pouco do tribunal o então ministro Sérgio Etchegoyen, após uma reunião tensa com os outros ministros. Na mesa, a punição ou não de um coronel que insultara Rosa Weber. Luís Roberto Barroso, especialmente, estranhou-se com Etchegoyen. Chegou então o aviso de que Dias Toffoli estava a caminho. Só Rosa Weber e Edson Fachin o esperaram, Barroso foi para seu gabinete. Ao chegar, Toffoli relatou uma situação preocupante. Sem usar a palavra golpe, o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) lembrou que o então comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, tinha 300 mil homens armados que apoiavam Jair Bolsonaro, um candidato que duvidava da lisura do processo eleitoral e incitava seus seguidores, os militares aí incluídos, a questionar as urnas eletrônicas. O TSE deveria ser, mais do que nunca, claro em seus posicionamentos.

A cena, narrada pelos repórteres Felipe Recondo e Luiz Weber, é uma das mais fortes do livro-reportagem "Os onze", lançado na quarta-feira (31) pela Companhia das Letras. Ele revela os bastidores do STF, desde o mensalão, em 2005, ao governo do capitão, neste ano. O episódio é mais um a receber a luz do sol num momento em que, mais do que nunca, está posta a discussão: a que ponto chega a influência dos militares na vida nacional?

Qual é o tamanho que as Forças Armadas têm no governo Bolsonaro? A República, embora não subjugada como entre 1964 e 1985, ainda é tutelada pelas fardas? Mas que tutela é essa, em que, no mais militarizado governo desde 1985, os generais têm sido recorrentemente esnobados ou humilhados por Bolsonaro?


A referência a uma tutela vem de outro livro, que voltou recentemente às prateleiras, "Forças Armadas e política no Brasil", lançado em 2005 pelo historiador José Murilo de Carvalho e até então esgotado. Agora reeditada pela Todavia, a obra ganhou um novo capítulo, “Uma República tutelada”, em que Carvalho analisa o papel dos militares sob a égide da Constituição de 1988.

O historiador registrou algumas melhorias nas relações entre civis e militares depois da redemocratização até poucos anos atrás. A principal delas foi um distanciamento, principalmente da Marinha e da Aeronáutica, da política. O anteparo do Ministério da Defesa passou a ser progressivamente respeitado. Mas restaram alguns pontos negativos dos dois lados. Do militar, a insistência em não reconhecer abusos praticados durante a ditadura e a resistência em abrir os arquivos da repressão — ao contrário do Chile e da Argentina, por exemplo. Do lado civil, a pouca importância dada à defesa nacional e a hostilidade de alguns políticos contra os fardados. Carvalho aponta um elemento definidor dessa relação: a Constituição de 1988.

Ele avalia que o texto constitucional deu um papel político e social às Forças Armadas ao expressar, no artigo 142, que elas se destinam à defesa da pátria e à garantia dos Poderes constitucionais e da lei e da ordem, por iniciativa de qualquer um desses Três Poderes. “É como se a República desconfiasse de sua capacidade de exercer o autogoverno civil e entregasse às Forças Armadas o papel político de tutela”, escreveu o historiador. “Não por acaso, chefes militares repetem sistematicamente que é seu dever constitucional intervir quando julgarem que as instituições correm risco.”

Carvalho ressalta que a inédita presença de militares no governo não significa que ali estejam as Forças — seja porque a quantidade de oriundos do Exército é bastante superior, seja porque os ministros, secretários e assessores não estão ali em nome de suas corporações, mas como civis. Mas vai explicar isso para a população...

Afinal, foi a Eduardo Villas Bôas que Bolsonaro agradeceu pela vitória, na passagem de comando do Exército, em janeiro. E foi também Villas Bôas que, em 2018, comandando o Exército, tuitou instando o STF a votar pela prisão de Lula.

O sucesso ou o fracasso de Jair Bolsonaro cairá na conta dos fardados. E é natural que seja assim.

O vice Hamilton Mourão concorda que os erros e acertos serão creditados às Forças, mas não compartilha da visão de que a República seja tutelada pelos militares. “Discordo frontalmente. As Forças Armadas, depois do período militar (1964-1985), entraram numa linha de profissionalismo muito forte. Nos separamos da política. Foi eleita uma chapa vinda do meio militar, eu muito mais militar, Bolsonaro muito mais político, mas as Forças Armadas continuam no papel delas. A República não é tutelada pelos militares”, argumentou Mourão à coluna.

Mourão, que já defendeu a possibilidade de um autogolpe pelo presidente numa situação de “anarquia” e de intervenção militar caso a Justiça não controlasse a corrupção, entende que é excessivamente subjetivo o trecho da Constituição que fala no acionamento das Forças Armadas para garantia dos Poderes constitucionais. “Isso merece uma discussão. É muito vago na Constituição”, avaliou.

Entre uma visão e outra, os fatos dos últimos sete meses mostram uma humilhação sem precedentes para os generais. Olavo de Carvalho debochou da doença de Eduardo Villas Bôas e foi condecorado. Carlos Bolsonaro atacou Mourão, conseguiu a demissão de Alberto dos Santos Cruz e, ao menos publicamente, não recebeu nenhuma repreensão. Até o general tido como eminência parda do governo, Augusto Heleno, está apagado no dia a dia do Planalto.

Num governo em que o descolamento da realidade aumenta a cada dia, pouco importa se são os ministros com DNA militar que trazem notícias boas para o presidente. O olavismo parece estar ganhando a parada.

Na segunda-feira 29, o general Otávio Rêgo Barros, peça-chave na comunicação do presidente, passou por um momento difícil. Ao ser perguntado no briefing diário sobre qual seria o crime cometido pelo jornalista Glenn Greenwald, Rêgo Barros não teve como sair de uma espiral orwelliana de apenas repetir que havia ocorrido um crime, sem especificar qual. O repórter perguntou sete vezes, e, em todas elas, o porta-voz se viu obrigado a repetir que essa era a visão de Bolsonaro, mesmo que a resposta não conversasse com a razão — outrora tão cara aos militares.

Certamente não era a esse tipo de cena que Eduardo Villas Bôas, tão preocupado com o futuro do país nas eleições de 2018, esperava assistir em 2019.

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