quinta-feira, 6 de dezembro de 2018

Somos civilizados

E por isso exterminamos “índios” – ou, pelo contrário, “somos civilizados” e, por isso mesmo, os acolhemos (ao lado de todos os seres vivos, inclusive o planeta – esse palco criador e sustentador da vida) na nossa misteriosa humanidade.

O general Cândido Mariano da Silva Rondon (descendente de ameríndios bororos e terenas), inventou o emblema abrangente e pródigo do Serviço de Proteção aos Índios a partir de sua fundação, em 1910: “Morrer se preciso for, matar nunca”.

Há nesse olvidado lema de cunho positivista uma mensagem sobre a qual o presidente eleito Jair Bolsonaro deveria meditar quando transforma as terras indígenas num problema. Porque escolher morrer antes de matar é o mesmo que honrar o governo para o qual se foi eleito a despeito das ocasiões em que a riqueza pública pode ser (como foi) furtada.


Morre-se também por um ideal de humanidade. É esse ideal que nos ancora uns nos outros – “índios” e “civilizados” – e é na consciência desse aprendizado recíproco que, como tem revelado a Antropologia Social, está o segredo de um mundo no qual a obsessão tecnológica pode ser relativizada pela serenidade ecológica constitutiva da sabedoria indígena.

Estou seguro de que Jair Bolsonaro não tem interesse em “matar os índios”. Contudo, devo remarcar que vivi com populações indígenas e as vi massacradas debaixo dessa intenção de “não matar”, precisamente porque suas terras haviam sido invadidas por ambição econômica. Ninguém tinha a intenção de matar; muito pelo contrário. O que se desejava conscientemente era “civilizar”, “amansar” ou “domesticar” sem, entretanto, respeitar outros estilos de vida.

O diabo mora exatamente nesse “domesticar” redutor de diferenças. Chamar de “índios” uma multiplicidade de línguas e culturas é o mesmo que classificar de fascistas aqueles que exprimem o propósito de governar honestamente o País. Do mesmo modo que Bolsonaro foi eleito reagindo à domesticação dos seus valores pessoais, essas populações tribais sem Estado, Exército e Igreja, mas com família, normas de convivência e crenças, têm o direito de conservá-las nos limites da democracia brasileira.

A demarcação não é um ardil. É um dever relacionado aos ideais de Rondon e de todos que, como eu, têm noção de como é árduo abrir-se para o dessemelhante e para quem, por ignorância, julgamos primitivos e selvagens.

Fui uma melancólica testemunha dessas cruéis etapas “civilizatórias”. Posso garantir ao presidente eleito que os indígenas brasileiros não querem morar em Portugal ou na Suécia; ou vender o Brasil para alguns dos nossos amigos e negócios. O que desejam é permanecer nas suas terras ancestrais, sem as quais seriam bloqueados de reproduzir-se com direito à liberdade de manter e adaptar suas línguas, costumes, cânticos e rituais que, afinal de contas, são como os cerimoniais e costumes que marcam as igrejas, as forças armadas, os tribunais e outras corporações conscientes e orgulhosas de suas identidades.

Leio comentários ambíguos sobre a continência do Bolsonaro ao ilustre visitante americano. Seria um gesto amistoso ou um sinal de subordinação? Mas o que é uma continência senão um gesto de reconhecimento e de respeito, equivalente a apertar a mão de um líder partidário ou pedir a bênção de um pai ou padre?

Do mesmo modo e pelas mesma obrigações costumeiras a que temos direito, recebemos visitantes modestos ou ilustres usando os nossos costumes num demonstrativo autêntico do nosso estilo de vida. Mas para realizá-los é preciso ter controle sobre o nosso espaço particular.

Peço vênia para dizer que um presidente eleito não pode confundir “terra demarcada” com “território nacional soberano” como foi o caso americano. Na tradição federativa e individualista dos Estados Unidos, o território soberano dos indígenas foi o ardil que levou a muitas guerras e ao extermínio de muitos grupos tribais. No nosso caso, a demarcação é um reconhecimento da interdependência de humanidades que, por um acaso histórico, foram engolfadas pelo Estado nacional brasileiro.

Estudos antropológicos revelam que essas sociedades de “índios” são mais justas e vivem em notável harmonia com a natureza. Por outro lado, a lição de um mundo desmesuradamente antropocêntrico é que o progresso também tem limites. Há muito que aprender com “índios” e com essa etapa que o governo Bolsonaro ambiciona inaugurar. Mas isso requer muito mais paciência e paz do que – numa boa, capitão! – improvisos irritados e confusos.

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