sexta-feira, 20 de julho de 2018

O povo como problema

Sempre que o Foro de São Paulo se reúne, recende de seus salões o ranço característico da esquerda autoritária latino-americana. Abundam palavras de ordem contra o “imperialismo americano” e invectivas contra o “neoliberalismo”, como se a guerra fria não tivesse terminado. No encontro, todos os problemas enfrentados pelos governos e partidos esquerdistas da região costumam ser atribuídos aos Estados Unidos, a representação do mal absoluto no discurso desses liberticidas. Na edição deste ano, realizada em Havana, não foi diferente: até mesmo a prisão de Lula da Silva foi caracterizada como parte da “guerra de caráter não convencional” que, segundo o ditador da Venezuela, Nicolás Maduro, os americanos deflagraram contra os “líderes progressistas” do continente.

“Exigimos a liberdade imediata de Lula, depois de uma condenação e prisão sem provas, e o direito a ser candidato presidencial nas eleições de outubro no Brasil, respeitando a vontade da maioria do povo brasileiro. Lula livre! Lula inocente! Lula presidente!”, diz a declaração final da 24.ª reunião anual do Foro de São Paulo – que, é claro, denuncia a “ofensiva reacionária, conservadora e restauradora neoliberal” capitaneada pelos Estados Unidos.


Em seu discurso, o ditador Maduro – que liquidou a oposição em seu país, encarcerou e exilou os dissidentes e reprimiu duramente todo tipo de manifestação contra seu governo, responsável pela penúria venezuelana – caracterizou o Brasil como um regime de exceção. Maduro disse ver o “martírio de Lula com dor, mas não com resignação”, denunciando que seu companheiro petista foi “escondido numa masmorra” para “impedir sua ação política”, porque “sabem que Lula livre ganhará a eleição presidencial no Brasil”. E acrescentou: “Basta!”.

Enquanto estão preocupados com a qualidade da democracia no Brasil, onde a imprensa é livre e as instituições funcionam, o Foro de São Paulo e seus ciosos delegados de partidos de esquerda entendem que a “Nicarágua sandinista”, por exemplo, é uma democracia plena – embora seu ditador, Daniel Ortega, tenha manobrado para se perpetuar no poder e mandado reprimir duramente manifestações contra seu governo, resultando, até agora, em mais de 350 mortos. Segundo o Foro, a Nicarágua de Ortega está sendo vítima da “política intervencionista” dos Estados Unidos, e os manifestantes estariam a serviço de “golpistas” teleguiados pelos americanos.

É evidente que, no léxico do Foro de São Paulo, a palavra “democracia” perde seu sentido estrito, servindo para designar unicamente regimes e partidos autoritários da América Latina que se pretendem legítimos porque julgam expressar a vontade do “povo”. Se o povo não concorda com a interpretação desses seus alegados porta-vozes, pior para o povo. Que o digam os presos políticos de Cuba, governada pela mais longeva ditadura do mundo, anfitriã do encontro “democrático” e “progressista” do Foro de São Paulo.

É em nome desse “povo” que o “campo progressista” latino-americano insiste na libertação de Lula, como se o suposto desejo popular expresso em pesquisas de intenção de voto para presidente fosse mais que suficiente para anular o julgamento que condenou o chefão petista à cadeia. Pouco importam os fatos, as provas e as sentenças de diversos juízes.

No delírio lulopetista, o sistema judicial brasileiro está tão eivado de golpistas que, segundo disse o ex-ministro Gilberto Carvalho a um site do MST, “só há uma forma de tirar Lula da cadeia”: um “levante popular, uma mobilização muito forte, uma radicalização do processo, seja de que forma for, que faça com que eles sintam que está ameaçada a estabilidade do País, e aí, por uma razão de força maior, libertem o Lula”.

O próprio Carvalho, contudo, reconhece que não será tarefa fácil, pois nem sempre o povo está suficientemente esclarecido para defender o PT. Ao comentar a dificuldade de mobilização, o amigão de Lula lamentou: “O povo faltou. O povo faltou no impeachment, o povo faltou na prisão de Lula”. Eis aí, para os espíritos autoritários, o “problema” das verdadeiras democracias: o povo, quando é livre, tem vontade própria.

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