segunda-feira, 30 de julho de 2018

Ninguém segura!

Olho pela janela. Contemplo uma procissão de retirantes. Fogem dos tiroteios de um morro próximo. De cabeça baixa, retratando uma humilhação que nos atinge a todos, seguem pela rua afora carregando suas trouxas. Muitos terão como casa a vida e como endereço o mundo.

Mas há algo errado na cena: a procissão segue em silêncio! Eis o que falta: uma trilha sonora adequada ao quadro! Talvez o “Requiem” de Wolfgang Amadeus Mozart. Ou o de Gabriel Fauré. Surpreendentemente, no entanto, ela surge, pelas mãos de torcedores reunidos em um prédio próximo! Agitando bandeiras do Brasil, celebrando a Copa do Mundo realizada na Rússia, começam a cantar e exclamar um sonoro “Viva o Brasil”!

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Animadamente, chegam ao refrão da música, uma certa “Eu te amo meu Brasil”, atribuída aos “Incríveis” (e nunca tão oportuna a referência). Cantam, a plenos pulmões, “Eu te amo, meu Brasil, eu te amo. Ninguém segura a juventude do Brasil”. Deve ser verdade – que o digam os retirantes.

A triste procissão segue seu curso. Passa diante de reluzentes prédios públicos – muitos deles abrigando importantes instituições, daquelas simbolizadas por vetustos brasões e símbolos magnos da república. À porta, tremulam os pavilhões nacional e estadual. E prossegue o fundo musical: “Eu vou ficar aqui, porque existe amor”.

Converso com um dos retirantes, meu conhecido de longa data. Com o olhar sem brilho e a voz embargada, me descreve o horror da noite anterior, entrecortada por disparos de revólver e metralhadora. Ao nosso lado, a música continua: “As noites do Brasil tem mais beleza, lá, lá, lá, lá”.

Sou apresentado, por intermédio de uma senhora, às lágrimas de sua neta, traumatizada pela cena dos meliantes portando armas pesadas ostensivamente, à luz do dia, e dos cadáveres que produzem impunemente. Com o coração apertado pela desesperança que testemunho na face daquela criança, mais música chega aos meus ouvidos: “Mulatas brotam cheias de calor. No Carnaval, os gringos querem vê-las”.

Vejo a procissão dobrando a esquina da rua e da vida. Ouço a música ao fundo. Passa-me pela mente a orquestra do tristemente célebre navio Titanic, embalando, com seus acordes, um naufrágio de proporções dantescas. Mas logo afasto qualquer associação com o quadro que vejo – afinal, lá a música traduzia compaixão.
Pedro Valls Feu Rosa

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