Era uma vez um paraíso à beira-mar que poucos sabiam que existia. Nesse paraíso, havia praias de areia branca a perder de vista, mar quente e transparente, casinhas de paredes caiadas e tetos de colmo, mesmo ali junto à costa. Um cenário idílico para quem queria fugir dos luxos da cidade e descansar no meio da Natureza, pouco importavam os mosquitos. As casinhas, tão românticas, pertenciam aos agricultores, que rapidamente foram sendo empurrados para paragens mais distantes e menos interessantes, deixando as zonas nobres para os endinheirados que tinham descoberto um paraíso chamado Comporta. Vieram os administradores da herdade e a família Espírito Santo, vieram os amigos deles e ainda os amigos dos amigos, tão simpáticos.
Em poucos anos, o espaço virou um condomínio privado de luxo com portões trancados a código, e com uma praia praticamente privativa de tão inacessível. As casinhas de colmo mantiveram o charme inicial, mas conquistaram espaço, piscinas e terrenos circundantes, fazendo deste um sítio perfeito para, já se sabe, brincar aos pobrezinhos. Foram galinheiros transformados em residências charmosas, foram anexos transformados em moradias de 400 metros quadrados, foram tanques transformados em piscinas azuis infinitas – porque isso de brincar aos pobrezinhos tem piada, mas há mínimos.
Tudo foi feito, já se sabe, meio à socapa, meio à descarada, passando nos intervalos da chuva das regras da zona de paisagem protegida e contando com a benesse das autoridades – toda a gente sabia que aquela era a coutada dos Espírito Santo e dos amigos e que as coisas se iam ajustando à sua vontade.
Num país servil aos poderosos, preferimos andar atrás dos anexos e das marquises em bairros de classe baixa do que afrontar interesses instalados. Depois da queda do BES e da desgraça de Ricardo Salgado é que a festa acabou e tudo se complicou. Como relata a VISÃO nesta edição, dos quatro inquéritos-crime abertos entre 2014 e 2017, três estão no Departamento de Investigação e Ação Penal e já foram constituídos dez arguidos, tendo sido encontrados fortes indícios de corrupção, tráfico de influências, recebimento indevido, falsificação de documentos e violação das regras de construção. Estima-se que foram feitas mais de 100 obras ilegais, 74 sem qualquer licença ou autorização camarária. À auditoria demolidora não escapou sequer o príncipe Louis-Albert de Broglie, que fez em abril capa da VISÃO – a primeira vez que veio a público dar conta da sua intenção de comprar a herdade. O Ministério Público acredita que três construções que fez nos seus terrenos foram ilegalmente aprovadas pela câmara, um imbróglio legal que será complexo de resolver.
Abrem-se agora pudicamente várias bocas de espanto para o que toda a gente sabia que vinha a acontecer há décadas. Entre os arguidos contam--se administradores da herdade, mas sobretudo autarcas e arquitetos da câmara que, alegadamente, foram coniventes com estes processos. Como é óbvio, dificilmente poderia ser de outra maneira...
Tudo isto se sabe literalmente em vésperas de ser decidida a compra daqueles cobiçados (e preciosos) terrenos, para os quais concorrem o dito príncipe francês (que subiu a parada à ultima hora), a Oakvest e o consórcio de Paula Amorim e Claude Breda. É uma boa oportunidade para arrumar com a pouca-vergonha
e emendar a mão a décadas de compadrios, facilitismos e conivências. Tal como dissemos na semana passada quando reportámos os esquemas suspeitos na reconstrução de Pedrógão, está na hora de acabar de vez com a tolerância em relação à chico-espertice nacional.
Mafalda Anjos, Editorial da VISÃO
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