domingo, 3 de junho de 2018

O Ano da Crisálida

A greve de caminhoneiros autônomos e empresas de transporte muito rapidamente promoveu desabastecimento das metrópoles brasileiras, mas trouxe ao mesmo tempo paisagens raras nas cidades, que só não seriam totalmente belas porque eram criadas por tensões distantes. Inúmeras estradas bloqueadas em territórios semi-rurais ou semiurbanos na vastidão do país repercutiam imediatamente no silêncio das mangueiras de gasolina e nas gôndolas de hortaliças nos supermercados. E rios de asfalto apareceram. Sem embarcações, ou melhor, sem carros, um oceano de asfalto que consome grande parte do espaço livre das cidades brasileiras surgiu plácido, colossal, inerte.

E, de repente, as pessoas estavam andando pela cidade. Picos no transporte público. Bicicletas compartilhadas sendo intensamente utilizadas. Poluição caindo. Cidades lentas.

Se não soubéssemos dos problemas em hospitais, nos bancos de sangue e na interrupção de aulas em escolas, seria um espetáculo poético da abstinência da sociedade brasileira dos combustíveis fósseis.

A última semana foi só mais uma fase do longo Ano da Crisálida, o ano de 2013.


Desde as jornadas de junho de 2013, estamos experimentando a tensão da tentativa da metamorfose da sociedade dentro da imobilidade do casulo rígido, agora enrugado e podre, das formas tradicionais do Estado brasileiro. Naquela ocasião, as mesmas ruas vazias de carros foram ocupadas pela população em gritos ideologicamente esquizofrênicos de anseio por mais eficiência para serviços públicos, mas também por melhores práticas democráticas. Os preceitos de que gestão era escopo da direita e de que participação política era da esquerda se misturaram num amorfismo, cujas palavras de ordem balbuciadas como grunhidos de bebê eram ouvidas por universidades ou empresas pelas frequências sonoras que lhes apeteciam. E a classe politica ensurdeceu.

Veio depois disso: Lava-Jato; acidente ambiental em Mariana; meia tonelada de cocaína num helicóptero; eleições após campanhas milionárias; prefeitos medíocres nas principais capitais; explosão de violência no país inteiro, mesmo após longo período de inclusão social; insolvência dos estados da federação; insurreição parlamentar; impeachment; R$ 51 milhões num apartamento em Salvador; empresários, marqueteiros e tornozeleiras; intervenção federal na segurança no Rio de Janeiro; pico de audiência em sessão coruja na TV do Judiciário; prisão de um ex-presidente da República por corrupção; colapso de prédio ocupado por movimentos de luta por moradia em São Paulo e, finalmente, aparentemente, a greve dos caminhoneiros. E, mais uma vez, esquerda e direita escutam e enxergam o que lhes convêm.

Este ano, que já dura cinco, é a conclusão dolorosa de um modelo insustentável de organização do país dedicado integralmente e fervorosamente a um nacional-desenvolvimentismo alimentado pela dialética da Guerra Fria, assustado à noite por bichos-papões da América imperialista ou da Cuba revolucionária, esperando Dom Sebastião, ou como intelectual liberal ou como líder popular. Todos esses monumentos colapsam agora sobre nossas cabeças.

As eleições de outubro serão a chance de romper o casulo feito de pedaços duros de políticos mortos, que insistem em nos assombrar, mas a verdadeira metamorfose implicará em conseguirmos prestar atenção à falência da industrialização e do consumo de petróleo como desenvolvimento da sociedade brasileira, e situar esse modelo na condição de passado ainda presente, e começar de fato a considerar novos arranjos urbanos, tecnológicos, culturais e sociais, buscando trazer ao presente o que já sabemos que nem é tão futuro assim, como a energia solar e eólica, por exemplo

Uma oportunidade de ampliar conhecimento e contato com esses novos signos será a Velo-City 2018, uma conferência internacional dedicada à mobilidade sustentável e à qualidade de vida nas cidades, que ocorre no Rio a partir do próximo dia 12, no Pier Mauá. Especialistas do mundo inteiro virão à cidade participar deste congresso organizado em temas como “Aprenda a viver”, “Felicidade e Qualidade de Vida”, “Integrar a Vida e o Transporte”, “Economia Viva” e “Acesso à Vida”, como conceitos decisivos para boas sociedades urbanas.

Políticos, empresários, economistas e acadêmicos brasileiros ainda consideram estes temas como frívolos diante de um mundo com tantas injustiças e preferem uma vez mais as armas ideológicas. Contudo, não encontraremos novas respostas fazendo as mesmas perguntas.

A restauração do país passa mais por priorizarmos a sustentabilidade das pequenas decisões e dos pequenos gestos, pela humanidade da gestão e pela eficácia no combate às desigualdades, do que pelos gritos de torcida. Teremos mais chances de sucesso com soluções que caminham e evoluem, como bicicletas e transporte público, e novas tecnologias energéticas, do que com os modos antigos do motor, da gasolina, de pneus, de asfalto e da velocidade. Ruas calmas e serenas são mais próximas de um futuro melhor do que a fúria de um século que já passou e que não consegue mais conter a transformação do Brasil..

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