Manuel Borges Neto, talvez o maior redator/revisor que já apareceu por estas plagas, partiu hoje aos 85 anos. Português de boa cepa, católico praticante e inveterado, tinha uma visão de lince para a última flor do Lácio ─ expressão que ele usou muitas vezes ao meu lado, na bancada do Jornal do Brasil, entre 2003 e 2005. Seu entusiasmo pelo texto bem-escrito era contagiante. Muitos vão lembrar de um fechamento de edição pré-carnaval, totalmente, da primeira à última linha, escrita pelo saudoso Lula Branco Martins. Eu via Borges debruçado sobre os prints (sim, ele lia no papel, impresso, nada de corretores em software na tela do PC) por horas. Caneta na mão, lendo baixo o texto, de vez em quando ria, não de algo engraçado, mas de coisas que ele apreciava no estilo de Lula Branco (que realmente era fora da curva). Eis que, de repente, ouvimos a última folha sendo puxada por Borges, arremessada ao ar, e a frase dele, embevecido:
Todas as folhas, absolutamente todas, não tinham sequer uma anotação do Borges, algo praticamente impossível de acontecer.
Suas frases viravam bordões da redação do Jornal do Brasil. E seu bom humor era algo fascinante, pois não era exatamente alguém desinibido. Em determinada época, ele e a esposa (que perdeu há alguns anos, tristemente) começaram a frequentar um encontro de casais às terças-feiras numa igreja católica. O editor, um cara que alguns já saberão quem é, fez uma brincadeira com Borges quando ele veio pedir (como se precisasse, alguém com a História dele) que às terças ele pudesse sair meia hora antes para poder ir aos encontros. Ao explicar que encontro era, o editor respondeu:
─ Encontro de casais? Isso tá parecendo suruba.
Bom, as coisas seguiram, e toda terça, depois de ler quilos de páginas, Borges se levantava, e o editor já sabia:
─ Vai lá para a suruba, Borges?
Ele sorria e respondia que sim.
Estamos falando de um português então com 70 e poucos anos, católico, de roupas sóbrias, e que certo dia, quando o editor recebia uma visita externa em sua bancada exatamente neste horário de saída, passou por lá e avisou:
─ Olha, fulano, já estou indo lá para a suruba ─ explicou, com todo seu sotaque, irresistível.
Algumas semanas depois, uma estagiária foi contratada ─ hoje jornalista profissional, da Globonews. E não é que os pais da estagiária frequentavam o encontro da igreja? Tome lá o Borges a comentar. “Os pais dela também vão à suruba”, divertia-se.
O apelido dos erros que ele marcava eram “cochilos” ─ e em uma época muito saudosa ele chegou a mandar e-mails diários com os tais cochilos, usando este termo para batizar. E eram aulas e mais aulas. Volta e meia eu tinha discussões longas com ele e, claro, os dois eram teimosos. Só que Borges tinha a autoridade, eu era só um rebelde sem causa. Por exemplo, quando algo acontecia na Rua Borges de Medeiros, perto da Lagoa Rodrigo de Freitas, eu escrevia que aconteceu na Lagoa, com caixa alta. Borges insistia que era caixa baixa. “É um acidente geográfico”, dizia o luso de Leiria. “Sim, Borges, mas Lagoa é o nome do bairro”. Mas havia discordâncias aos montes e ele insistia com lagoa. As gírias ele colocava em itálico. Mas certa feita foi preso um traficante, e no texto policial surgiu a expressão “cocaína malhada”. Explique-se antes: tudo o que não tinha bold ou itálico ou aspas, Borges dizia que era texto “redondo”, a palavra que ele usava para “normal”. O jornalista que fez o texto da cocaína escreveu “malhada” em itálico. Borges pediu a palavra:
– Olha, “cocaína malhada” desce redondo!
Ouviu as risadas inevitáveis do bando de maliciosos que o cercava. E, como sempre, passou a repetir o bordão e rir sempre ─ por mais que a vida estivesse dura. E a vida, meus amigos, foi dura: em agosto de 2005, quando o JB demitiu oitenta pessoas em um só dia, adivinhem quem estava na lista? O revisor de 70 e poucos anos. Com um salário que mal chegava aos 1500 reais, na época.
A lista, claro, havia sido feita por gente de fora da redação, usando sei lá que critério. A gente não se conformava ─ mas não havia rigorosamente nada a fazer. No momento em que ele se preparava para ir embora, conformado, mas com toda a altivez de um homem que viu duas grandes guerras, pedimos a todos na redação, indo de mesa em mesa: “Aplausos para Borges Neto”. E assim foi feito, um momento inesquecível, ainda que pesaroso e que eu preferia que jamais tivesse acontecido.
A mim, ele chamava sempre, rindo, de “meu vizinho com seus decibéis”, pelo fato de que volta e meia eu precisava gritar para falar com alguém em outra bancada. Daí ele se debruçava na folha, e eu às vezes perguntava na dúvida:
─ Borges, prefeitura, só a palavra, sem dizer o lugar, é caixa alta ou baixa?
Em vez de responder falando, ele fazia o gesto do braço indo para baixo, sem tirar os olhos do print. Outros bordões maravilhosos era quando, lá pelas três da manhã de sábado, jornal de domingo sendo quase fechado, ele arrumava as coisas para esperar o último print. E “apressava a gente”:
─ Mais um pouco e não me vereis!
E quando as risadas eram excessivas, contagiando até a ele, desabava:
─ Ah, nosso patrão que não me ouça… mas eu viria até de graça.
Borges teve duas filhas ─ sem contar a filha que eu chamaria de “filha de honra”, a Florença, que todos os anos, rigorosamente todos os anos, desde que todos nós saímos do JB (inclusive o Borges), organizava encontros de Natal para o velho revisor. Uma caridade jamais divulgada (que é como mandam aqueles que pedem caridade, mas não vamos falar nisso) e que ela vai provavelmente me matar por contar ─, mas era serviço completo: não se resumia a pedir uma grana para todo mundo, as pessoas tinham que ir ao encontro dele, numa lanchonete ou restaurante. Florença entregava ainda compras de supermercado e procurava saber se havia necessidade de algo ─ inclusive remédios. E ao longo do ano também fazia essa checagem.
Se um homem consegue inspirar uma única pessoa a fazer algo assim por ele, podemos dizer, com certeza, que este homem foi alguém muito bem-sucedido. E que fez História. Borges Neto, um gênio da Língua Portuguesa, já fazia falta, e há muito tempo, desde que os jornais pararam de se importar muito com as questões com as quais Borges sempre se importou demais. Que nossos patrões jamais nos ouçam, mas trabalhar ao lado do Borges, até de graça valia a pena.
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