Nesta terceira semana após a morte de Marielle Franco e Anderson Pedro Gomes, nada foi feito de prático para esclarecer o crime nem parece que haja alguém realmente empenhado em explicar o que houve, identificar os responsáveis e puni-los na forma da lei. Com todos os cuidados para não ser confundido com os oportunistas que não disfarçam seu evidente interesse em tirar proveito da tragédia, da dor e do sangue derramado para sórdidos efeitos políticos. A esquerda achou a mártir de que precisava para narrar a saga do desespero, da miséria e da insegurança de seus militantes. A direita limita-se a desmoralizar a vítima, dando-lhe características satânicas com a mesma desfaçatez e idêntica imaginação para pintar e bordar seus preconceitos e soluções mágicas para velhos dramas rotineiros da violência que assola o País, na cidade e no campo, e da insegurança que a todos devia assustar, mas para alguns serve de válvula de escape.
Episódio bastante diferente teve igual repercussão: os furos de bala na lataria do ônibus que transportava convidados e encarregados da cobertura para a imprensa da caravana do pretenso pré-candidato à Presidência da República Lula da Silva. O tempo passa e, assim como a violenta e inepta polícia fluminense, a autoridade responsável pelo combate ao crime no Paraná não dispõe de um mísero fato para justificar seja qual for das versões díspares a mais provável. A esquerda não tem dúvida de que os insignes comandantes do Partido dos Trabalhadores (PT) e representantes da multifacetada e despreparada ala socialista foram alvo de um atentado político malsucedido. Não lhe faltam razões para espalhar essa notícia sem base em fatos: a direita é suficientemente estúpida para dar ao condenado em fuga da cadeia pretexto para se vitimizar. E seu discurso armamentista justifica a hipótese plausível, mas longe de ser comprovada. Essa ala elitista e “golpista”, de seu lado, já tem uma teoria para chamar de sua: “Ora, foram os próprios comunas que atiraram contra o ônibus” – que, aliás, não transportava ninguém relevante na hierarquia dos partidos em disputa eleitoral pelo lado gauche. O discurso de vitimização dos militantes da caravana dá também uma forte tonalidade provável a essa teoria, que, da mesma forma que a dos oponentes, não pode ser descartada.
Fake news de um lado ou de outro, contudo, incrementam a violência de parte a parte e a impunidade generalizada é reforçada pela cegueira ideológica e pela falta de compromisso com a verdade e com o Estado de Direito, que ambos os lados desprezam. Pois, afinal, ambos querem mesmo é impor seus métodos e ideias sobre os outros, que são amigos ocultos no combate à democracia, ao império da lei, que é deixada de lado, e no apanágio do convívio pacífico, que é simplesmente queimado na fogueira dos autos de fé desses extremos sem juízo nem caráter.
Marielle Franco era mulher, negra, militante de um partido de esquerda, homossexual e voz minoritária, mas ativa, contra a intervenção militar na segurança do Estado do Rio e altiva e corajosa contra a letalidade de uma polícia em que cabem muito bem os dois papéis: o de carrasco e o de vítima. O ovo da serpente é também um enigma impossível, pelo menos nas atuais circunstâncias, de decifrar: policiais morrem mais porque matam mais ou acontece exatamente o inverso? A resposta a essa terrível questão passa pelo debate inócuo sobre a inocência ou o oportunismo dos mártires dessa intifada de inimigos inconciliáveis, que deveriam ser adversários civilizados. E deixa de lado o único jeito de estancar o sangue derramado pelas balas perdidas, das quais só se conhece o alvo, nunca a mira.
Neste instante, nada trará de volta a vida da vereadora e do motorista, da mesma forma que ninguém, de um lado ou de outro, depois das balas disparadas contra o ônibus da caravana de Lula, recorrerá à razão, à cabeça fria e à prudência para erguer a voz contra o ódio à diferença. Não interessa a esta altura nem a lógica que acusa nem a mão que atira a pedra ou o ovo. A razão começa na capacidade de investigar e descobrir antes de concluir e apontar o dedo na direção do nariz do outro.
A intervenção militar, dita federal, na Segurança do Rio começou errada e não tem como produzir acertos, pelo menos enquanto não abandonar as raízes podres plantadas no pântano de suas primícias. Marielle tinha razão de ser contra. O governo que a engendrou estava interessado em pirotecnia e marquetagem política, definida na expressão calhorda do porta-voz do presidente, adequadamente chamado de Mouco: “capitalização política”. Tanto tempo depois do “golpe de mestre”, a violência recrudesce e não há lenitivo para os disparos em sequência e os urros dos atingidos, inocentes ou suspeitos. Em dezembro, quando o prazo se esgotar, com os governos federal e estadual nos estertores de uma agonia que só o povo sofre, a intervenção ainda será popular pelo que representa de óbvia esperança. Mas também ineficaz, enquanto não responder aos desafios fáticos com a realidade nua e crua, e não tontas teorias apressadas.
Neste fim de semana, O Globo publicou testemunhos oculares da execução de Marielle e Anderson que a polícia não ouviu porque dispensou, seja na cena do crime, seja, depois, na delegacia. Tudo o que a autoridade trouxe a lume foi a tentativa de usar o fato para bater caixa. O ministro da Segurança Pública cometeu o desatino de sair disparando por aí futricas desconexas que ouvia nos corredores de quartéis e delegacias desprovidas de inteligência de verdade, mas cheias de comadres fofoqueiras – o carro localizado em Minas, a fábula de mil e uma noites da munição da Polícia Federal (PF) usada na chacina de Osasco, no massacre de São Gonçalo e em agências de correios da Paraíba, etc.
Os generais Braga e Richard já perderam muito tempo ensinando repórteres a entrevistar e distribuindo comunicados sem fatos a narrar. Poderiam agora partir de um pressuposto básico: ou recorrem à PF, à Agência Brasileira de Informação (Abin), ao FBI ou ao Serviço Secreto de Sua Majestade para descobrir quem matou Marielle e Anderson, ou terminarão incluídos no rol dos Judas a serem malhados no Sábado de Aleluia que vem. Nada há de seguro para servir de ponto de partida para uma certeza qualquer, mas a inépcia das polícias do Rio resulta da incompetência reconhecida por anos de fiasco na guerra contra o crime ou da desconfiança de que os verdadeiros autores da execução jamais apontarão para o próprio peito. Nesse sentido, aliás, a autoridade perdeu muito terreno: afinal, os assassinos da juíza Patrícia Acioli, que ousou desafiar a banda (será mesmo só uma banda?) podre das forças de repressão do Estado do Rio, foram apontados e punidos. Pelo andar da carruagem (e que carruagem lenta, seu Jungmann!), isso não acontecerá agora. Como também a polícia paranaense não tem competência nem vontade para dar à opinião pública neutra nessa guerra ideológica de completos idiotas uma satisfação lógica sobre os furos na fuselagem do ônibus dos jornalistas e convidados de Lula, em Francisco Beltrão. Sei que não é simples. Mas a questão é que ou dá ou desce, ou vai ou racha. Não há panos quentes que não queimem nem água fria que não afogue nesse cruzamento de torpedos de investigação cegos e trôpegos.
É ingenuidade demais imaginar que é possível calar os torpedos verbais do condenado por corrupção passiva e lavagem de dinheiro ou os ovos e pedradas de seus inimigos figadais. Ou pedir que a esquerda desarme o altar de Marielle para ajudar a descobrir os que encurtaram sua vida promissora de líder política de uma comunidade sem voz. Mas urge exigir dos militares que entraram na fria da intervenção por falta de coragem e dos policiais federais que só querem protagonizar a guerra popular contra a corrupção que façam um esforço sério, competente e de verdade para identificar, prender e processar os verdadeiros donos dos revólveres que dispararam contra o Agile no Estácio, o berço do samba, ou o ônibus que cruzava a terra fértil do Paraná, que teve em José Richa, pai do governador Beto, um político capaz e responsável, que ajudou a construir a democracia com ousadia e sem tremer de medo do arbítrio armado e truculento. A democracia hoje precisa mais dessas investigações do que da propaganda boboca da Justiça Eleitoral de uma eleição da qual não é capaz sequer de acompanhar a contabilidade ilícita.
José Nêumanne
Episódio bastante diferente teve igual repercussão: os furos de bala na lataria do ônibus que transportava convidados e encarregados da cobertura para a imprensa da caravana do pretenso pré-candidato à Presidência da República Lula da Silva. O tempo passa e, assim como a violenta e inepta polícia fluminense, a autoridade responsável pelo combate ao crime no Paraná não dispõe de um mísero fato para justificar seja qual for das versões díspares a mais provável. A esquerda não tem dúvida de que os insignes comandantes do Partido dos Trabalhadores (PT) e representantes da multifacetada e despreparada ala socialista foram alvo de um atentado político malsucedido. Não lhe faltam razões para espalhar essa notícia sem base em fatos: a direita é suficientemente estúpida para dar ao condenado em fuga da cadeia pretexto para se vitimizar. E seu discurso armamentista justifica a hipótese plausível, mas longe de ser comprovada. Essa ala elitista e “golpista”, de seu lado, já tem uma teoria para chamar de sua: “Ora, foram os próprios comunas que atiraram contra o ônibus” – que, aliás, não transportava ninguém relevante na hierarquia dos partidos em disputa eleitoral pelo lado gauche. O discurso de vitimização dos militantes da caravana dá também uma forte tonalidade provável a essa teoria, que, da mesma forma que a dos oponentes, não pode ser descartada.
Fake news de um lado ou de outro, contudo, incrementam a violência de parte a parte e a impunidade generalizada é reforçada pela cegueira ideológica e pela falta de compromisso com a verdade e com o Estado de Direito, que ambos os lados desprezam. Pois, afinal, ambos querem mesmo é impor seus métodos e ideias sobre os outros, que são amigos ocultos no combate à democracia, ao império da lei, que é deixada de lado, e no apanágio do convívio pacífico, que é simplesmente queimado na fogueira dos autos de fé desses extremos sem juízo nem caráter.
Marielle Franco era mulher, negra, militante de um partido de esquerda, homossexual e voz minoritária, mas ativa, contra a intervenção militar na segurança do Estado do Rio e altiva e corajosa contra a letalidade de uma polícia em que cabem muito bem os dois papéis: o de carrasco e o de vítima. O ovo da serpente é também um enigma impossível, pelo menos nas atuais circunstâncias, de decifrar: policiais morrem mais porque matam mais ou acontece exatamente o inverso? A resposta a essa terrível questão passa pelo debate inócuo sobre a inocência ou o oportunismo dos mártires dessa intifada de inimigos inconciliáveis, que deveriam ser adversários civilizados. E deixa de lado o único jeito de estancar o sangue derramado pelas balas perdidas, das quais só se conhece o alvo, nunca a mira.
Neste instante, nada trará de volta a vida da vereadora e do motorista, da mesma forma que ninguém, de um lado ou de outro, depois das balas disparadas contra o ônibus da caravana de Lula, recorrerá à razão, à cabeça fria e à prudência para erguer a voz contra o ódio à diferença. Não interessa a esta altura nem a lógica que acusa nem a mão que atira a pedra ou o ovo. A razão começa na capacidade de investigar e descobrir antes de concluir e apontar o dedo na direção do nariz do outro.
A intervenção militar, dita federal, na Segurança do Rio começou errada e não tem como produzir acertos, pelo menos enquanto não abandonar as raízes podres plantadas no pântano de suas primícias. Marielle tinha razão de ser contra. O governo que a engendrou estava interessado em pirotecnia e marquetagem política, definida na expressão calhorda do porta-voz do presidente, adequadamente chamado de Mouco: “capitalização política”. Tanto tempo depois do “golpe de mestre”, a violência recrudesce e não há lenitivo para os disparos em sequência e os urros dos atingidos, inocentes ou suspeitos. Em dezembro, quando o prazo se esgotar, com os governos federal e estadual nos estertores de uma agonia que só o povo sofre, a intervenção ainda será popular pelo que representa de óbvia esperança. Mas também ineficaz, enquanto não responder aos desafios fáticos com a realidade nua e crua, e não tontas teorias apressadas.
Neste fim de semana, O Globo publicou testemunhos oculares da execução de Marielle e Anderson que a polícia não ouviu porque dispensou, seja na cena do crime, seja, depois, na delegacia. Tudo o que a autoridade trouxe a lume foi a tentativa de usar o fato para bater caixa. O ministro da Segurança Pública cometeu o desatino de sair disparando por aí futricas desconexas que ouvia nos corredores de quartéis e delegacias desprovidas de inteligência de verdade, mas cheias de comadres fofoqueiras – o carro localizado em Minas, a fábula de mil e uma noites da munição da Polícia Federal (PF) usada na chacina de Osasco, no massacre de São Gonçalo e em agências de correios da Paraíba, etc.
Os generais Braga e Richard já perderam muito tempo ensinando repórteres a entrevistar e distribuindo comunicados sem fatos a narrar. Poderiam agora partir de um pressuposto básico: ou recorrem à PF, à Agência Brasileira de Informação (Abin), ao FBI ou ao Serviço Secreto de Sua Majestade para descobrir quem matou Marielle e Anderson, ou terminarão incluídos no rol dos Judas a serem malhados no Sábado de Aleluia que vem. Nada há de seguro para servir de ponto de partida para uma certeza qualquer, mas a inépcia das polícias do Rio resulta da incompetência reconhecida por anos de fiasco na guerra contra o crime ou da desconfiança de que os verdadeiros autores da execução jamais apontarão para o próprio peito. Nesse sentido, aliás, a autoridade perdeu muito terreno: afinal, os assassinos da juíza Patrícia Acioli, que ousou desafiar a banda (será mesmo só uma banda?) podre das forças de repressão do Estado do Rio, foram apontados e punidos. Pelo andar da carruagem (e que carruagem lenta, seu Jungmann!), isso não acontecerá agora. Como também a polícia paranaense não tem competência nem vontade para dar à opinião pública neutra nessa guerra ideológica de completos idiotas uma satisfação lógica sobre os furos na fuselagem do ônibus dos jornalistas e convidados de Lula, em Francisco Beltrão. Sei que não é simples. Mas a questão é que ou dá ou desce, ou vai ou racha. Não há panos quentes que não queimem nem água fria que não afogue nesse cruzamento de torpedos de investigação cegos e trôpegos.
É ingenuidade demais imaginar que é possível calar os torpedos verbais do condenado por corrupção passiva e lavagem de dinheiro ou os ovos e pedradas de seus inimigos figadais. Ou pedir que a esquerda desarme o altar de Marielle para ajudar a descobrir os que encurtaram sua vida promissora de líder política de uma comunidade sem voz. Mas urge exigir dos militares que entraram na fria da intervenção por falta de coragem e dos policiais federais que só querem protagonizar a guerra popular contra a corrupção que façam um esforço sério, competente e de verdade para identificar, prender e processar os verdadeiros donos dos revólveres que dispararam contra o Agile no Estácio, o berço do samba, ou o ônibus que cruzava a terra fértil do Paraná, que teve em José Richa, pai do governador Beto, um político capaz e responsável, que ajudou a construir a democracia com ousadia e sem tremer de medo do arbítrio armado e truculento. A democracia hoje precisa mais dessas investigações do que da propaganda boboca da Justiça Eleitoral de uma eleição da qual não é capaz sequer de acompanhar a contabilidade ilícita.
José Nêumanne
Nenhum comentário:
Postar um comentário