Em todo o caso, alguma coisa me diz que a primeira rebelião virá de um animal pacífico. Talvez o cão, talvez a calhandra. Ou a rola, hoje tão modesta e conformada. Não sei, não sei. Agora mesmo (vá lá explicar porque) tive a certeza de que será o potro. Vi-o no meio de um prado, com erva até os joelhos, o sol a acender-lhe fogachos no pelo sedoso - e de repente erguer-se nas patas traseiras, esgrimir os cascos, de crina revolta e beiços arreganhados de furor. E se aqui deixo, afinal, esta revelação, é só porque sei que, no fundo, ninguém vai acreditar-me.
Ao princípio, os homens ficam surpreendidos. Depois, o interesse científico leva-os a sobrevoar de helicóptero as manadas e rebanhos, os insetos alados e os bandos de pássaros, os intermináveis cortejos de lagartas e formigas. Tiram fotografias e escrevem relatórios e reportagens. Colhem aqui e além um animal crispado, estudam-lhe o comportamento, vivissectam e dissecam - e nada encontram, porque não há vírus da ira nem micróbio da fúria.
Quando os animais se tornam incômodos, os homens põem em uso a panóplia doméstica dos pequenos conflitos: armas de caça, inseticidas, redes, venenos, armadilhas. Mas os animais são inúmeros. Surgem de todos os lados e cercam as cidades. E não adianta contar com a inimizade do cão e do gato, nem com o gosto do leão pela carne da gazela. Os animais alimentam-se de sua própria cólera. Então os homens substituem o DDT pelo TNT, a caçadeira pela bomba atômica, o papel apanha-moscas pelos gases. É inútil. Sobre os cadáveres de uns, avançam outros. Dos esgotos saem exércitos de ratos enfurecidos. As toupeiras cegas abrem caminho a longas serpentes que dormiam no interior da terra. As noites são povoadas de rumores estranhos: sussurros, pulsões de asas, guinchos, crepitações de mandíbulas secas, uivos e rugidos, silvos arrepiantes. E quando o dia nasce, os homens, pálidos de insônia e medo, lêem nos jornais que uma esquadra inteira foi afundada por monstros marinhos e que trezentos aviões caíram com os reatores asfixiados de penas e carne triturada.
Virá então o pânico. A cólera dos animais cresce até se transformar em loucura de extermínio. Os homens perguntaram uns aos outros o que fizeram para merecer esta condenação. Não podem enviar parlamentares porque os animais não falam. E se falassem, a cólera cortar-lhes-ia a voz.
Que fazer? que fazer? São chamados os sábios e os filósofos - e ninguém traz salvação. Vêm os políticos e os engenheiros - e calam-se. Pede-se auxílio a toda gente, velhos, adolescentes, crianças - e nada. Dão-se alvíssaras. O mundo dos homens vai acabar.
Talvez acabe mesmo. E se os animais vierem a endoidecer de cólera e desencadearem esta guerra (em 2968, por exemplo), ao menos o último homem, coberto de formigas que o estraçalham, ainda poderá pensar que morre a lutar pela humanidade. Não contra a humanidade... E será a primeira vez que tal acontece.
José Saramago
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