Mas Malesherbes, denominação de um boulevard que começa atrás da igreja de Madeleine e atravessa um dos bairros mais nobres de Paris, não foi o único francês homenageado por Batochio. Ele também fez apaixonada defesa de Nicolas Sarkozy, bem-sucedido arrivista de direita, adversário figadal dos socialistas e agora acusado de hábitos que outro advogado de Lula, Márcio Thomaz Bastos, teria dificuldades em chamar de “republicanos”. O público, incauto e surpreendido com a convicção da defesa de práticas contábeis eleitorais da direita francesa, talvez pudesse obter do criminalista informações mais detalhadas a respeito da investigação sobre eventuais delitos que lhe são atribuídos. E o que tem a ver o umbu com as cascas? Caso não o faça, correrá o risco de ser contestado por leitores mais respeitosos da verdade histórica chamados a lembrar-lhe que a República Francesa, que, a seu ver, “no passado foi modelar e, através do Iluminismo, exportou liberdade e democracia para o mundo”, somente o fez após decapitar o rei xará de seu cliente e cujo defensor foi citado em seu discurso como inspiração máxima.
O inflamado inimigo da “maré montante do autoritarismo”, que, segundo o douto defensor, hoje assola o Brasil e o mundo a ponto de se negar a viver no futuro sob tal égide, um inesperado anúncio prévio de suicídio, foi capaz de algumas agressões à verdade histórica. Mas não as perceberam os enlevados ministros que o ouviram na sessão interrompida para Marco Aurélio Mello poder comparecer à própria posse numa “relevantíssima” associação do Direito do Trabalho, logo ele que, para isso, estava tendo de faltar à própria função de julgador. Tarefa, aliás, muito cansativa também para Dias Toffoli e Rosa Weber, na certa levada à exaustão pela penosa leitura dos textos postos à mesa por sua assessoria.
Além da boutade de seu nobre (sem aspas mesmo) colega francês, o causídico socialista moreno também recorreu a um texto que tem sido usado como ai-jesus de todos quantos defendem a jabuticaba podre conforme a qual a execução da pena só pode ser iniciada quando é percorrido todo o trânsito em julgado. É bem verdade que, como lembram os pernambucanos José Paulo Cavalcanti Filho e Joaquim Falcão, essa esquisitice tropicalista não é praticada em nenhuma das 194 democracias com assento na Organização das Nações Unidas. Como foi dado a perceber, o STF prepara-se para retirar o Brasil dessa unanimidade civilizada para reduzir o País à esquisitice singular que instalará o “festim da impunidade” (expressão do brilhante editorial do Estado de domingo 25 de março) e à orgiástica celebração de advogados de bandidos grã-finos de colarinho branco, que agora têm em Luiz Condenado seu ícone vivo, livre, leve e solto. Refiro-me, é claro, ao artigo 5.º, inciso LVII da Constituição, cujo teor o orador oportunisticamente omitiu, com a provável intenção de omitir o abismo que há entre o texto constitucional e a determinação do trânsito em julgado, cujo destino exigirá resignação dos brasileiros de bem que querem punição para criminosos antes de executarem os 12 trabalhos de Hércules e alcançarem o velo de ouro de Jasão.
No entanto, a ex-promotora e atual advogada criminalista Luiza Nagib Eluf, que defende similar postergação, fez aos leitores da página de Opinião do Estado o especial obséquio de citá-lo por inteiro. E aqui está: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória”. Aí é que está o busílis. Em que dispositivo constitucional se explicita que só será preso quem for considerado culpado? Em que dicionário da língua portuguesa prisão e decretação de culpa se associam no mesmo verbete? É nessa confusão que incorrem a articulista, o neodireitista e os abnegados defensores de poderosos que atualmente compõem a maioria avassalada de uma instituição que não tem agido de forma a ser considerada suprema. A não ser se se levar em conta a generosidade com que trata seuscompadritos que participam de seus convescotes no Planalto Central, longe demais dos anseios da Nação.
Registro neste texto o otimismo dos especialistas Cavalcanti e Falcão, que ainda acreditam na possibilidade de não ser concedido habeas corpus a Lula, mesmo depois do supremo deboche de que participaram ao adiarem a sessão para cumprimento de uma Páscoa de 12 feriados sem expediente. Duvido e faço pouco, como diria meu avô Chico Ferreira, que não teve o desprazer de sobreviver à plataforma de chicanas que transforma o STF numa corte de achincalhes ao digno contribuinte, que lhes paga o salário mais alto permitido a um servidor público nesta República de réus.
Os juristas pernambucanos que consultei, perplexos com as decisões estrambólicas de Cármen Lúcia, que deixou de julgar para liderar um time de privilegiados empenhados em garantir as prebendas de quem os alçou ao topo de suas carreiras, têm razão num ponto. O destino judicial de Lula já foi decidido na primeira e na segunda instâncias. O que se está concedendo àquele que seu advogado agora nomeia herdeiro de Luís XVI (sem Maria Antonieta) não é um habeas corpus. Já defini a medida ao dia e à hora como sendo uma anistia. Mas talvez seja obrigado a reconhecer que a melhor definição foi dada pelo general da reserva Hamilton Mourão: um salvo-conduto. Exatamente aquele bilhetinho amarfanhado pelo suor que os “coiteiros” de Lampião usavam para percorrer o sertão sem risco de serem assaltados por algum cangaceiro desavisado.
Talvez não seja de todo fora de propósito advertir o público pagante de que o soit-disant Supremo está levando a sério demais sua condição de Corte (agora um puxadinho da de Luís XVI). E, por isso, resolveu zerar o placar acusador de que em quatro anos de Lava Jato 123 pessoas foram condenadas na primeira instância e nenhuma pelo STF. Quando o chefão da quadrilha do mensalão e do petrolão (conforme reconheceu agora o Tribunal Regional Federal da 4.ª Região, TRF-4, for anistiado e começar sua campanha presidencial, de salvo-conduto em punho, e o efeito Lula tiver reduzido o déficit presidiário, tirando os gatunos de colarinho branco de suas celas, o placar será zero a zero. Nosso consolo vai ser dizer que o STF se concedeu com o número de condenações a nota certa para seu vergonhoso desempenho. Ou seria o escárnio que venceu o cinismo?
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