quarta-feira, 28 de março de 2018

Democracia e controle do Judiciário

Teve Atenas e teve Roma. Uma fracassou porque não chegou a inventar o recurso à representação, a outra porque inventou a democracia representativa, mas não a fórmula para submeter de fato o representante à vontade dos seus representados. É nesse mesmo “brejo” que nós chafurdamos com 1.500 anos de atraso. Brasília não enxerga os confins do “império”. Os confins do “império” não enxergam Brasília, que só age e legisla em causa própria. E assim os “bárbaros”, de caneta ou de fuzil na mão, nos vão mergulhando na barbárie.

A democracia.3.1 fechou o século 18 afirmando que quem devia mandar era o povo e nenhum poder e nenhum dinheiro poderiam, mais, ser outorgados por um homem a outro homem. Só o que fosse consequência do esforço individual e do merecimento seria aceito. Sendo assim, passaram a eleger diretamente a maioria dos funcionários antes nomeados por políticos de modo a torná-los mais suscetíveis aos destinatários finais dos seus serviços e sujeitos a cobranças e demissões ainda que blindados contra a politicagem.

Mas logo descobriram que quatro anos podiam ser muito, muito tempo. A democracia.3.2 abriu o século 20 estendendo os poderes do cidadão-eleitor para antes e para depois do momento das eleições de modo a dar ampla efetividade ao controle por ele exercido sobre os atos dos seus representantes e funcionários eleitos. Afirmou também, em paralelo, que a liberdade individual é exercida na nossa dimensão de produtores e consumidores e não pode ser garantida senão pela competição entre patrões e fornecedores pela nossa preferência e que, portanto, este devia ser o limite da recompensa econômica ao desempenho individual.

O controle do Judiciário foi sempre o passo mais difícil em cada etapa dessas reformas. Apesar de todas as razões que tornam desejável a independência desse Poder, durou pouco mais de 50 anos, nos Estados Unidos, o sistema de nomeação de juízes que copiava o sistema dos reis europeus (o nosso). Ainda que essa nomeação fosse para uma função vitalícia “enquanto (o agraciado) se comportasse bem”, faltava inventar uma maneira de dar consequência prática a essa ressalva retórica. Na falta dela, a corrupção pegou forte no Poder que podia decidir sobre a liberdade e os bens alheios.

Em 1832 o Estado do Mississippi passou a eleger diretamente os seus juízes. O argumento dos que são contra esse sistema é que obrigá-los a fazer campanha eleitoral deixa os juízes “sujeitos ao poder econômico”. O argumento dos a favor é que “sujeito ao poder econômico todo mundo está” e que, com todos os inconvenientes considerados, eles preferiam que os seus juízes sujeitos ao poder econômico pudessem ser “deseleitos” se dessem sinais dessa sujeição. Até 1861, quando começou a guerra civil, 24 dos 34 Estados da União da época já tinham aderido a esse sistema. 

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Houve um momento também em que eles consideraram seriamente sujeitar à cassação por referendo apenas as sentenças judiciais que revertessem reformas políticas. O país estava vivendo a sua mais profunda crise, em tudo semelhante à do Brasil de hoje. Tinha passado por um processo de urbanização violento, as cidades estavam à beira do caos, mergulhadas na miséria e no crime, a industrialização tinha dado um poder de corrupção gigantesco a empresários que, mancomunados com juízes e políticos que controlavam havia décadas as máquinas partidárias, impediam a renovação da política e revertiam toda reforma que se conseguia nos Estados e municípios. A campanha de Theodore Roosevelt por um terceiro mandato, em 1912, que abraçava essa bandeira, resumia o sentido da reforma que o ex-presidente empurrara durante dois mandatos anteriores e vinha conquistando o país, cidade por cidade, Estado por Estado, desde a virada do século 19 para o 20: voto distrital puro para amarrar cada representante aos seus representados, eleições primárias diretas para abrir a política à renovação, recall de políticos e funcionários a qualquer momento, referendo das leis dos Legislativos, abertura às leis de iniciativa popular. Começando por Los Angeles em 1903, as inovações vinham do Oeste, onde se estavam fixando os novos self-made men, para o Leste, onde os “interesses especiais” de velhas curriolas estavam enraizados havia mais tempo. A base dessa proposta era que o povo tem o direito de escolher o regime político sob o qual quer viver e, portanto, esse tipo de decisão não devia ser revogável por juízes sem mais apelação.

Eles só conseguiram uma solução intermediária satisfatória a partir de 1940, quando o Estado do Missouri instituiu as “eleições de retenção” de juízes (retention elections). Nesse modelo os juízes continuam a ser selecionados, seja por conselhos especialmente constituídos, seja pelos governadores com confirmação dos Legislativos. Mas só se mantêm na função enquanto o povo, destinatário da justiça que fornecem, se disser satisfeito com o que recebe. Hoje 20 Estados, a cada quatro anos, incluem nas cédulas das eleições majoritárias, ao lado de tudo mais em que se vota diretamente lá (leis de iniciava popular, referendos de leis dos Legislativos, mudanças em impostos, emissão de dívida pública, recall de funcionários, etc.), o nome de todos os juízes da jurisdição de cada eleitor (cíveis e criminais, de primeira instância ou das Supremas Cortes estaduais, equivalentes aos nossos STJs) a pergunta: “O juiz fulano de tal deve permanecer mais quatro anos no cargo”? “Sim” ou “não”. Se vencer o “não”, o juiz é destituído e o sistema põe outro no lugar. Um terço dos juízes americanos ainda são diretamente eleitos e muitos Estados combinam esse sistema ou o de nomeações com as retention elections. Mas juiz onipotente não existe mais em lugar nenhum.

Como na vida real manda quem tem o poder de DEMITIR, nas democracias de verdade quem tem o poder de demitir todo e qualquer servidor público a qualquer momento é o povo. Sem esse direito elementar, todo o resto da conversarada sobre “democracia” é pura tapeação.

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