quinta-feira, 23 de novembro de 2017

Cenas explícitas de miséria que não deixarei de ver até morrer

Tenho um medidor particular da perene e obscena miséria brasileira: são os baixos de um viaduto na Avenida Rubem Berta, que salta o cruzamento com a avenida José Maria Whitaker. Moro por ali, na mesma casa, faz exatos 40 anos. Passar pela duas avenidas é caminho indispensável para praticamente todos os destinos.

A paisagem humana sob o viaduto acaba sendo uma cena explícita do fracasso de um país: há pelo menos 25 anos, farrapos humanos, sujos e andrajosos, amontoam-se nos baixos do viaduto (perdoe a dureza dos termos, mas a realidade é que dura, não a descrição dela).

No domingo, uma jovem, sentada na calçada, tentava equilibrar nas pernas um bebê, para poder trocar as fraldas. Mãe jovem e recém-nascido, mas já condenados, talvez pela eternidade, a serem “famélicos da terra”, que jamais se levantarão, ao contrário do que pede a “Internacional”, o hino que caiu em desuso.

A cena bastou para me convencer de que vou morrer antes de que esse peculiar pátio dos milagres desapareça. Afinal, já passaram pelo governo, nesses 25 anos de exposição cotidiana da miséria, Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff/Michel Temer. Ou praticamente todas as principais cores do arco-iris político. Ia dizer político-ideológico, mas será que esse pessoal tem mesmo alguma ideologia ou é apenas uma questão de ocupação do poder?


Depois desses governos todos, o sítio oficial do Ministério de Desenvolvimento Social (ainda no governo Dilma) informava que o Brasil contava, em janeiro de 2015, com 73.327.179 pessoas pobres — o que dá cerca de 36% de sua população total.

O número aparecia no Cadastro Único para Programas Sociais, que “reúne informações socioeconômicas das famílias brasileiras de baixa renda — aquelas com renda mensal de até meio salário mínimo por pessoa”.

Famílias de baixa renda é um piedoso eufemismo para pobres ou, até, para miseráveis, conforme se pode ver quando se separam os cadastrados por faixa de rendimento: de R$ 0 até R$ 77,00 – 38.919.660 pessoas; de R$ 77,01 até R$ 154,00 – 14.852.534 pessoas; e de R$ 154,01 até meio salário mínimo –19.554.985.

O total é um estoque infernal de miséria e pobreza. Pode até haver mais, porque o cadastro inclui 7,8 milhões de pessoas que ganham mais que meio salário mínimo. Mas não especifica quanto mais.

É natural, portanto, que um presidente após o outro, farrapos humanos continuassem sob o viaduto. Às vezes, há menos gente, às vezes mais, na dependência da conjuntura econômica.

Eu disse natural? Não, não deveria ser natural. Deveria ser causa de uma indignação coletiva, um urro nacional para pôr fim à chaga aberta na pele da sociedade. Nunca foi. Naturalizou-se a miséria, como tantas outras desgraças da pátria.

Algum prefeito, não me lembro qual, até que tentou solucionar o, digamos, problema. Não, ingênuo leitor, não providenciou abrigo digno para os deserdados da fortuna nem montou um programa que lhes permitisse sair da miséria. Apenas colocou grades junto ao canteiro em que se assentam as colunas do viaduto.

Tirou, portanto, o precário encosto dos miseráveis. Eles mudaram de calçada, e a vida continuou, os carros continuaram passando ao lado dessas criaturas, invisíveis para todos nós. Vê-las nos acusaria a todos de um tremendo fracasso civilizatório.

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