terça-feira, 5 de setembro de 2017

Uma prodigiosa discórdia

É possível medir o índice de felicidade e estabilidade social de um país estudando as grandes polêmicas que o dividem. Um país que discute se está em ditadura ou em democracia, como aconteceu em Angola ao longo da passada semana, ainda tem um longo e sofrido caminho a percorrer. O mesmo se pode dizer do Brasil, onde quase todas as grandes polêmicas dos últimos meses têm como origem a extrema corrupção da sua classe política. Nas duas Coreias discute-se a guerra. Nos Estados Unidos, a ligação, ou não, entre a terrível tempestade que quase afundou Houston, o aquecimento global e as lamentáveis escolhas políticas do presidente Donald Trump. São, todas elas, discussões sérias, urgentes, fundamentais.

O que dizer, porém, de um país que debate, com vibrante entusiasmo — colocando nisso toda a alma e emoção dos mais dramáticos dilemas éticos —, as qualidades e defeitos de dois livros de exercícios para crianças dos quatro aos seis anos de idade?
Parque de Diversão Alienígena


Foi o que aconteceu em Portugal nos últimos dias. A publicação de dois manuais escolares, um destinado a meninas e outro a rapazes, com textos semelhantes, da mesma autora, mas ilustrações de duas artistas diferentes, desencadeou uma medonha troca de argumentos entre correntes inimigas: de um lado, os que se insurgiam contra o machismo intolerável da editora; do outro, os que defendiam o direito às meninas a gostarem mais de princesas do que de carrinhos e os meninos, mais de futebol do que de bordados.

Um exercício, em particular, indignou as/os feministas. Tratava-se de um labirinto. Acontece que o labirinto no caderno dos rapazes era um pouco mais intrincado do que aquele que surgia no caderno das meninas. A página com os dois labirintos foi reproduzida em diversos jornais, fazendo com que alguns dos mais respeitados cronistas portugueses, homens e mulheres, produzissem violentas colunas criticando a editora.

Alarmado com o imenso alarido, o governo português, através da Comissão para a Cidadania e Igualdade de Gênero, aconselhou a editora a recolher os polêmicos livros — o que esta fez, apressadamente, sem sequer se defender.

Foi então que o comediante Ricardo Araújo Pereira surgiu num programa televisivo de sátira política, o “Governo Sombra”, com os dois livros na mão. Começou por dizer que lera os livros e se sentira defraudado, pois ao contrário do que todos os críticos haviam dito, não encontrara neles nenhum explícito indício de preconceito machista. Os labirintos diferentes não resultaram de uma opção deliberada, mas do simples acaso. Noutros desenhos, aliás, as meninas surgem em situações que denotariam uma maior inclinação intelectual: por exemplo, lendo livros, enquanto os meninos brincam com carrinhos.

Ricardo Araújo Pereira acusou os muitos detratores dos agora famosos (ou infames) manuais escolares, de nem sequer os terem lido. Alguns dos visados reagiram, confirmando que sim, que não haviam lido os livros, mas insistindo no protesto.

A prodigiosa discórdia portuguesa não só comprova amplamente a minha tese inicial, sobre a possibilidade de avaliar o índice de felicidade dos diferentes países através das suas principais polêmicas, como nos alerta para os excessos do pensamento dito politicamente correto.

Países a braços com grandes problemas discutem grandes problemas. Países sem problemas discutem o sexo dos anjos. Literalmente. Antes desta grave questão dos manuais escolares já me havia surpreendido ao assistir a debates épicos, nos jornais portugueses e nas redes sociais, sobre dramas tão relevantes quanto a presumível flatulência de um jovem cantor.

Países felizes são, regra geral, países chatos. A felicidade é irmã do tédio. A lista dos países mais felizes do mundo, no Relatório Mundial sobre a Felicidade, da responsabilidade da Rede de Soluções para o Desenvolvimento Sustentável, das Nações Unidas, é liderada, sem surpresa, pela Noruega, Dinamarca e Islândia. É claro que até nesses países podem acontecer brutais irrupções de irracionalidade, como em 2011, quando o terrorista cristão de extrema direita Anders Breivik assassinou 77 pessoas; no geral, porém, é mais certo morrer de tédio do que a tiro.

Lembro que na Suécia, em março deste ano, estalou um inédito escândalo de corrupção: o deputado de um partido conservador utilizou em benefício próprio as milhas acumuladas no cartão que o Estado oferece aos parlamentares para uso gratuito dos transportes públicos no país. Ao que parece, o deputado corrupto terá usado os pontos do cartão para comprar um pacote de amendoins.

Talvez o ideal seja viver em Oslo (ou em Lisboa), lendo os jornais brasileiros ou angolanos. Assim, não correremos o risco nem de morrer de tédio, nem tão pouco a tiro.

José Eduardo Agualusa

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