Descrita esta evidência de forma tão crua, agora urge desdobrarmos o raciocínio, considerando a realidade. Apenas fatos. O ranking das atividades profissionais que remuneram melhor, elaborado pelo economista José Roberto Afonso, professor do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (FGV), recorreu ao instrumento adequado para medir a traça que mina a capacidade da sociedade de suportar o ônus da máquina pública nacional. Com base em dados oficiais, tornados públicos pela Secretaria da Receita Federal do Ministério da Fazenda, na cobrança do Imposto de Renda da Pessoa Física, o estudo revela que a elite do funcionalismo público, remunerada pelos impostos pagos pelo cidadão, ocupa a maioria das dez profissões mais bem pagas de todas. E o ônus dos privilégios impressiona, além de se mostrar revelador.
A mais bem-sucedida atividade profissional entre nós não depende diretamente de remuneração estatal. No entanto, é o melhor e mais impressionante exemplo do absurdo dos privilégios concedidos pela mão generosa do Estado. Os 9.409 brasileiros titulares de cartórios estão na liderança disparada do ranking, com um rendimento declarado oficialmente ao Fisco de R$ 10,7 bilhões. O cartório não é uma repartição pública, mas o apêndice da burocracia estatal que configura um privilégio histórico de raiz ibérica, analisado com rigor sociológico no clássico Os Donos do Poder, do ex-presidente da Ordem dos Advogados do Brasil Raymundo Faoro. A instituição, criada para atestar, registrar propriedades e dar fé, atua como oneroso instrumento de complicação da atividade econômica. Ao longo dos séculos, tem funcionado como uma traça que corrói o patrimônio público, praga que atende pela denominação acadêmica de cartorialismo, cujo símbolo é o carimbo, sucedâneo dos selos de garantia de fidelidade de assinaturas sem cujo peso nada se abre ou se fecha no território nacional.
Entre as atividades que absorvem diretamente a poupança (ou melhor, sua falta) nacional no ranking do elitismo pátrio, destacam-se as carreiras de Estado no provimento da justiça: membros do Ministério Público (promotores e procuradores), em segundo lugar; empregados do Poder Judiciário e dos Tribunais de Contas (que são órgãos acessórios do Legislativo), em terceiro; e advogados do setor público, procuradores da Fazenda e consultores jurídicos, em sexto. Em quarto lugar figuram os diplomatas, encarregados de representar o País no exterior. Em sétimo estão burocratas de atividades financeiras públicas, de carreiras: servidores do Banco Central, da Comissão de Valores Mobiliários e da Superintendência de Seguros Privados.. E, por fim, cobradores de impostos: funcionários das carreiras de auditoria fiscal e de fiscalização, os odiados publicanos nas priscas eras do Império Romano, em oitavo.
Os profissionais liberais mais destacados no ranking são os médicos, em quinto. Por incrível que pareça para leigos, habituados a tomar conhecimento das quantias formidáveis pagas a astros do futebol no mercado externo e também no interno, os esportistas e atletas ocupam o décimo lugar, logo abaixo dos mais bem remunerados pilotos de aeronaves, comandantes de embarcações e operadores de máquinas, em nono.
Em média, um craque recebe R$ 219 mil e 400, enquanto um titular de cartório, 1 milhão e 100 mil, ou seja, mais de cinco vezes mais. Na primeira página do Estadão de segunda-feira 10 de outubro, destaca-se, e esse peso aritmético retrata essa desigualdade, o fato de que os integrantes da elite estatal ganham, em média, quatro vezes o que recebem os profissionais da mesma categoria na empresa privada.
No domingo 9, este jornal trouxe a lume no alto da capa outra demonstração nada edificante de como essa elite conseguiu recentemente, sob desgovernos exercidos por um partido que se diz dos trabalhadores e coadjuvantes selecionados na nata dos oportunistas parasitas da política nacional, acrescentar dados mais preocupantes. Na reportagem que faz parte da oportuníssima série de José Fucs sobre “a reconstrução do Brasil” foi relatada a dureza da batalha que há que ser travada contra os privilégios para as contas públicas entrarem nos eixos.
De acordo com pesquisa feita pela Diretoria de Análise de Politicas Públicas da FGV, o total de servidores públicos federais, estaduais e municipais nos três Poderes da República subiu, vertiginosamente, de 5,8 milhões em 2001 para quase 9 milhões em 2014. Ao contrário do que seria lógico esperar, esse aumento de mais de 66% em 13 anos em nada melhorou o desempenho do Estado em seus serviços básicos de saúde, educação e segurança pública. Ao contrário, o aparelhamento político, partidário e ideológico pelos donos do poder neste século 21 desmantelou uma engrenagem que já era enferrujada, injusta e inepta.
Como era de esperar, o resultado concreto é que, conforme revela o jornal, em meio à grave crise fiscal, os governos dos Estados do Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Bahia, Sergipe e Roraima, além do Distrito Federal, enfrentam dificuldades extremas para pagar o 13º salário, um dos mais sagrados direitos trabalhistas em vigor, a 2 milhões de funcionários. O pior é que, considerando a dimensão da crise econômica, financeira, política e moral que se abateu sobre a nossa cabeça como consequência da irresponsabilidade fiscal da tal “nova matriz econômica” das desastrosas gestões federais petistas, é um milagre que ainda haja Unidades da Federação com capacidade mínima para honrar os pagamentos de suas folhas de salários a cada mês.
Por isso tudo, reveste-se de imensa crueldade a sabotagem explícita da oposição de esquerda, esmagada nas urnas no primeiro turno das recentes eleições municipais, às tentativas de remendos e panos quentes com que o atual governo, composto pelos salvados do incêndio da parceria interrompida no impeachment de Dilma Rousseff, pretende calafetar o casco do transatlântico em pleno naufrágio. Sem gastos ajustados à realidade contábil nacional e ajustes que só se poderão manter após reformas profundas, capazes de corrigir essa realidade que torna a capacidade financeira do Estado agonizante, não será possível evitar o quadro drástico desenhado na manchete do Globode domingo. Segundo reportagem de Daiane Costa, ainda que a economia nacional volte a crescer, até 2025 (daqui a nove anos) a população mais pobre será aumentada em mais 1 milhão de famílias além dos 40 milhões que atualmente compõem seu segmento de renda mais baixa. Esse estudo, feito pela consultoria Tendências, complementa outro, do Ibase, segundo o qual a maior preocupação dos pobres é o desemprego.
Tudo isso é líquido e certo. Tudo é de uma evidência cristalina. Por que, então, providências como o teto dos gastos públicos, a reforma da deficitária Previdência e a redução dos vencimentos de servidores em início de carreira a partir das próximas contratações (por concurso, por favor!) ainda são consideradas impopulares? Até quando nosso povo se deixará enganar pela cantilena das sereias do populismo sedutor, que tapam o sol da verdade com os véus diáfanos de suas patranhas? Até quando queimar pneus, quebrar vidraças e depredar automóveis nas ruas manterá o País na sarjeta do mundo, afundando a Pátria amada idolatrada, salve, salve, no poço de pré-sal da corrupção desenfreada e da miséria anunciada?
E, pior ainda, até quando os barnabés (funcionários públicos que recebem uma merreca de vencimentos) serão confundidos com esses marajás do desserviço público? Eles, coitados, nem sequer gozam nenhum dos benefícios e privilégios usufruídos pelos apaniguados dos dirigentes políticos, que reservam os melhores empregos e suas prerrogativas para áulicos, assessores e familiares! Os interessados confundem essa elite com tais servidores modestos e muito mal pagos. Por causa disso, estes deveriam ser os primeiros a se rebelar, pois correm risco de não receber os caraminguás a que têm direito quando os cofres públicos estiverem completamente esvaziados.
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