O fardo estatal se faz sentir sobre os cidadãos e as empresas de forma implacável. Ele se expressa nos impostos de Primeiro Mundo que os brasileiros têm de pagar, em troca de serviços de Terceiro Mundo, na burocracia que emperra o cotidiano das famílias e o desenvolvimento dos negócios e na corrupção endêmica, que cria dificuldades para vender facilidades. Mas, hoje, talvez, nada simbolize tanto o peso que a sociedade tem de carregar para manter o mamute em pé quanto o funcionalismo e seus privilégios.
Nos últimos anos, impulsionado pelo estatismo pregado nos governos Lula e Dilma, com impacto em todo o País, o número de funcionários públicos deu um salto. Segundo uma pesquisa realizada pela Diretoria de Análise de Políticas Públicas da Fundação Getúlio Vargas (FGV-DAPP), o total de funcionários na ativa passou de 5,8 milhões, em 2001, para quase 9 milhões, em 2014, nos três níveis de governo (federal, estadual e municipal) e nos três Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário), – um aumento de 54,4%. Isso sem contar os funcionários terceirizados, principalmente nas áreas de limpeza, segurança e manutenção predial, que somam cerca de 18 mil só no governo federal. O maior crescimento do efetivo, de 94%, aconteceu nos municípios, em parte pelas novas atribuições recebidas com a Constituição de 1988, para criar e manter serviços públicos de alcance local. No Executivo federal, embora o crescimento tenha sido um pouco menor – cerca de 30%, – foram contratados 120 mil novos servidores no período, mais que o dobro do total de trabalhadores do Bradesco, um dos maiores bancos do País.
Com o tsunami de contratações, era inevitável que os gastos com pessoal crescessem em progressão geométrica. Mas eles aumentaram em ritmo ainda mais acelerado que ao das contratações, em decorrência da concessão de aumentos salariais bem acima da inflação para o funcionalismo. O “rombo” existente hoje nos orçamentos do governo federal e de vários Estados e municípios é decorrente, em boa medida, do inchaço da folha de pagamento nesse período. Desde 2001, as despesas com pessoal tiveram um aumento de 127,3%. Passaram de R$ 171,6 bilhões para R$ 390,2 bilhões em 2014, em valores já corrigidos pela inflação. A diferença daria para o governo federal pagar o Bolsa Família, concedido a 13 milhões de beneficiários, de acordo com dados oficiais, por sete anos. A conta das benesses, como sempre, sobrou para os pagadores de impostos. O gasto per capita dos brasileiros para pagar os salários do funcionalismo quase dobrou em 14 anos, de R$ 976 para R$ 1.925, em valores de 2014, também considerando os três níveis de governo e os três Poderes. “A despesa de pessoal do governo é muito grande e tem muita importância na composição de gastos do governo”, afirma o professor Nelson Marconi, coordenador executivo do Fórum de Economia na FGV de São Paulo e um dos responsáveis pela reforma administrativa realizada no governo Fernando Henrique. “O ajuste fiscal tem de passar pela questão de pessoal.”
Enquanto no setor público os salários subiram, em média, cerca de 50% nos três níveis de governo desde 2001, na iniciativa privada o aumento médio ficou em 21,4%, já descontada a inflação do período. O aumento real do funcionalismo, na média, foi mais que o dobro do obtido no setor privado. Essa diferença só encontra paralelo em Portugal, onde alcança 58%, segundo um levantamento feito pelo economista Marcos Köhler, consultor legislativo do Senado. Na Alemanha, os salários do funcionalismo são, em média, 7% menores que no setor privado. Na França, 8%. Mesmo em países em que os salários do setor público são maiores, como Espanha, Grécia e Itália, a diferença fica em torno de 30%, bem aquém do que acontece no Brasil (e em Portugal). “Havia uma grande influência sindical no governo”, diz Köhler. “Isso contribuiu para a obtenção de acordos salariais muito favoráveis pelo funcionalismo no nível federal, que acabaram influenciando o setor público como um todo.”
Obviamente, a média salarial do funcionalismo esconde os casos extremos, tanto na base como no topo da pirâmide. Mas, nos últimos anos, os salários iniciais das diferentes carreiras da administração, em especial na esfera federal, receberam aumentos reais generosos, distanciando-os também dos valores pagos no setor privado. Enquadram-se nessa categoria os motoristas da Câmara Federal, que ganham mais de R$ 12 mil e os garçons do Senado, com salário superior a R$ 17 mil, o menor para servidores efetivos, sem escolaridade, mas com comprovação de “capacidade técnica” para a função. É no andar de cima, porém, que se encontram os casos mais escandalosos, particularmente no Poder Judiciário, onde os valores dos benefícios recebidos “por fora” superam, muitas vezes, os valores dos salários ou chegam bem perto deles, engordando os vencimentos. São tantos os subterfúgios que, em muitos casos, o teto constitucional – que limita os salários do setor público federal aos vencimentos recebidos pelos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) aos dos governadores nos estados e aos dos prefeitos nos municípios – tornou-se uma peça de ficção.
Mesmo com salários bem acima da média do mercado, custeados pelos contribuintes, o apetite do funcionalismo parece não ter fim. No momento em que o Brasil real enfrenta a recessão interminável, o desemprego recorde e a queda na renda, os servidores federais, protegidos pela estabilidade no emprego e com a aposentadoria garantida com o mesmo salário da ativa, lotam as galerias do Congresso Nacional para reivindicar, sem constrangimento, a aprovação de aumentos reais de salário e a preservação de suas vantagens. “Alguém teria de dizer para eles que nós estamos numa crise fiscal muito grande e que o que estão pedindo não tem nexo com o mundo real”, afirma Marconi.
Ao mesmo tempo, as greves e ameaças de greves em serviços essenciais, como saúde e segurança, sem desconto dos dias parados e sem risco de represálias, tornaram-se uma realidade que afeta de forma dramática o dia a dia da população, em especial nas faixas de menor renda, que dependem quase exclusivamente dos serviços públicos. “No Brasil, há uma classe que se aproveita de todo o setor privado e manda no País”, diz o economista Antonio Delfim Netto, ex-ministro da Fazenda, do Planejamento e da Agricultura. “O Brasil é vítima do corporativismo estatal que se apropriou de Brasília.” Segundo o advogado Almir Pazzianotto, o ex-ministro do Trabalho e ex-presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST), é difícil enfrentar os interesses do funcionalismo, porque os servidores têm intimidade com os deputados, senadores e estão dentro do Congresso, das Assembleias Legislativas e das Câmaras Municipais, que deveriam ser os responsáveis pela aprovação de medidas para restringir os privilégios. “A corporação não está pensando no bem comum, mas em seus próprios benefícios”, diz Pazzianotto. “Nós trouxemos a ideia do corporativismo do fascismo. É uma coisa um pouco medieval também, das velhas corporações de ofício, que se organizavam para proteger as atividades profissionais de seus integrantes”.
Embora o espírito de corpo predomine no funcionalismo, nem todos rezam por essa cartilha, Muitos servidores públicos fazem jus ao título. Trabalham duro para servir à população e se preocupam em efetuar suas tarefas com dedicação e eficiência, muitas vezes sob os olhares enviesados dos colegas. As generalizações quase sempre acabam promovendo injustiças. Feita a ressalva, porém, não dá para negar o que qualquer brasileiro que já entrou numa repartição pública pode observar. Em geral, há um contingente razoável de funcionários que, escudados pela estabilidade, fazem o que se costuma chamar em português claro de “enrolação”. Nos cargos de livre nomeação, que somam cerca de 21 mil, conforme os dados oficiais mais recentes, boa parte dos interessados, de acordo com Pazzianotto, já se aproxima dos políticos mal-intencionada, para obter um privilégio, e não para se tornar um servidor exemplar. “O princípio do privilégio é o não comparecimento ao trabalho, não ter a obrigação de cumprir horário”, diz. “Você sempre tem aquele funcionário faltoso, acumula falta, sempre tem atestado médico e você sabe que ele é apenas um ocioso, não quer trabalhar.”
Pazzianotto afirma que, ao assumir a presidência do TST, encontrou em seu gabinete mais de 200 funcionários comissionados, quando precisava de apenas 20. “Eu tinha até funcionário da presidência em Nova York. O marido foi para lá e a mulher foi atrás, devidamente autorizada.” Ele conta que, na ocasião, chamou um funcionário do TST, que já conhecia, para uma conversa. “Eu disse: ‘Escuta fulano, em todos esses anos que estou aqui, vejo você namorando pelos corredores o dia inteiro, está sempre encostado com uma funcionária, não necessariamente a mesma. Comigo você não vai fazer isso. Você vai ter de trabalhar.”
Embora haja muitas áreas com excesso de pessoal, há outras em que falta gente. De acordo com Nelson Marconi, na área administrativa, é comum haver uma quantidade grande de servidores, com baixa produtividade, porque não há tanta cobrança como na iniciativa privada. “De forma geral, daria para cortar fácil, fácil, pelo menos 10% do pessoal”, diz Nelson Marconi. “Na esfera administrativa, poderia ter um corte até maior, de uns 20%.” Por ora, porém, parece pouco provável que, no atual cenário político e econômico, o presidente Michel Temer esteja disposto a abrir mais essa frente de batalha.
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