Depois de uma gestação, de um show de hierarquia e de lastimáveis rapapés, nasceu um aborto político-jurídico generoso para com quem manda. Graças a um brasileirismo chamado “fatiamento”, quem deixou de ser rainha por irresponsabilidade administrativa continua a “ser majestade”. E fica mais um problema para atormentar as nossas almas machadianas.
O julgamento confirmou como somos especialistas em fechar uma porta para abrir a porteira. Foi isso, não a exaltação da oposição, que transformou o Senado Federal num hospício. Eis que Renan Calheiros virou uma garrafa de Klein. Aquele recipiente sem boca ou fundo, pois, num primeiro ato, o senador defendeu aos berros o Senado, mas, no final, sua repulsa esvaiu-se no acordão que me acordou. Todos são companheiros e inimigos simultaneamente. O básico é que estão com a caneta do poder.
Consciente, enfrento o meu ceticismo antropológico. Ele me diz que, mesmo num mundo globalizado, cada sistema continua a fazer certas coisas a seu modo e jeito.
No nosso caso, a abundância de tribunais, de polícias e de leis testemunha os inúmeros espaços pelos quais as normas se contradizem e adormecem a sinceridade. Muitas leis têm como objetivo a ambiguidade, e lidar com o ambíguo não é apenas coisa para santo ou poeta, mas faz surgir o especialista em chicana e má-fé.
O paradoxal espaço carnavalesco precisa do malandro. Esse herói dominante, dramatizado por Mário de Andrade, em 1928, em “Macunaíma”. Retomei o tema no livro que você não deve ter lido “Carnavais, malandros e heróis”, em 1979, quando estudei Pedro Malazartes como o modelo de todos os “sabidos”. Não seria ele o fundador do nosso populismo qual permanente fábrica de otários e inocentes úteis?
Somos todos “legalistas”, sobretudo na ilegalidade — quando usamos uma lei contra outra, o que, como estamos vendo à exaustão, leva ao assassinato do senso comum, obrigando a duvidar do real, mesmo correndo o risco de erradicar a vergonha e a honra. Fatiamos tudo. Até mesmo as normas, empurrando suas sobras para um outro colo. O resultado é a institucionalização da dúvida e da mentira como sagacidade no campo politico-moral. Quem não mente de cara limpa, quem não defende o indefensável é um otário. Ser malandro é saber “arrumar-se” e realizar tudo o que temos visto mais contundentemente a partir do mensalão e do petrolão, culminando — graças à Lava-Jato e a uma crise desmedida — com o afastamento da presidente.
Seria pueril de parte de um velho praticante, por mais de 60 anos, do ofício de antropólogo ser contra o ambíguo e o paradoxal. O sombreado do mal-entendido é inevitável no mundo social. Caso contrário, não existiriam mitologias ou marginalidades, como ensinava Victor Turner. Sem diferentes pontos de vista, moinhos de vento não poderiam virar como gingantes como ocorre no “Dom Quixote”.
Do mesmo modo, eu vejo a canalhice disfarçada de marxismo vulgar justificando a criação de uma autêntica “nomenclatura” e de um projeto político autojustificável porque nele está enfiada a palavra “pobre” como um conceito cristão, e isso suspenderia todos os juízos morais e todas as boas normas de competência.
George Orwell nos ensinou que guerra pode ser paz e que a mentira vira verdade. No Brasil, o “superior” não apenas mente — como é da índole dos que estão por cima — ele deve mentir. Primeiro, porque isso faz parte da ética de dominação aristocrática, onde existem os companheiros e os outros; depois, porque todos tinham a mais absoluta certeza da impunidade. E, na punição, haveria um recurso. Para os inferiores, porém, não haveria nuance ou condescendência. Haveria apenas o fato e a realidade da pena. Mas, para os “especiais” que “obram”, e obram em abundância, “nada pegaria.”
Se isso não é hierarquia e um resíduo aristocrático do tamanho de um rinoceronte, eu não seu quem sou. Se não podemos acabar com a malandragem, podemos ao menos pensar como essa lógica dúplice pode liquidar o Brasil. Afinal, deve haver um limite para a autodestruição.
Roberto DaMatta
No nosso caso, a abundância de tribunais, de polícias e de leis testemunha os inúmeros espaços pelos quais as normas se contradizem e adormecem a sinceridade. Muitas leis têm como objetivo a ambiguidade, e lidar com o ambíguo não é apenas coisa para santo ou poeta, mas faz surgir o especialista em chicana e má-fé.
O paradoxal espaço carnavalesco precisa do malandro. Esse herói dominante, dramatizado por Mário de Andrade, em 1928, em “Macunaíma”. Retomei o tema no livro que você não deve ter lido “Carnavais, malandros e heróis”, em 1979, quando estudei Pedro Malazartes como o modelo de todos os “sabidos”. Não seria ele o fundador do nosso populismo qual permanente fábrica de otários e inocentes úteis?
Somos todos “legalistas”, sobretudo na ilegalidade — quando usamos uma lei contra outra, o que, como estamos vendo à exaustão, leva ao assassinato do senso comum, obrigando a duvidar do real, mesmo correndo o risco de erradicar a vergonha e a honra. Fatiamos tudo. Até mesmo as normas, empurrando suas sobras para um outro colo. O resultado é a institucionalização da dúvida e da mentira como sagacidade no campo politico-moral. Quem não mente de cara limpa, quem não defende o indefensável é um otário. Ser malandro é saber “arrumar-se” e realizar tudo o que temos visto mais contundentemente a partir do mensalão e do petrolão, culminando — graças à Lava-Jato e a uma crise desmedida — com o afastamento da presidente.
Seria pueril de parte de um velho praticante, por mais de 60 anos, do ofício de antropólogo ser contra o ambíguo e o paradoxal. O sombreado do mal-entendido é inevitável no mundo social. Caso contrário, não existiriam mitologias ou marginalidades, como ensinava Victor Turner. Sem diferentes pontos de vista, moinhos de vento não poderiam virar como gingantes como ocorre no “Dom Quixote”.
Do mesmo modo, eu vejo a canalhice disfarçada de marxismo vulgar justificando a criação de uma autêntica “nomenclatura” e de um projeto político autojustificável porque nele está enfiada a palavra “pobre” como um conceito cristão, e isso suspenderia todos os juízos morais e todas as boas normas de competência.
George Orwell nos ensinou que guerra pode ser paz e que a mentira vira verdade. No Brasil, o “superior” não apenas mente — como é da índole dos que estão por cima — ele deve mentir. Primeiro, porque isso faz parte da ética de dominação aristocrática, onde existem os companheiros e os outros; depois, porque todos tinham a mais absoluta certeza da impunidade. E, na punição, haveria um recurso. Para os inferiores, porém, não haveria nuance ou condescendência. Haveria apenas o fato e a realidade da pena. Mas, para os “especiais” que “obram”, e obram em abundância, “nada pegaria.”
Se isso não é hierarquia e um resíduo aristocrático do tamanho de um rinoceronte, eu não seu quem sou. Se não podemos acabar com a malandragem, podemos ao menos pensar como essa lógica dúplice pode liquidar o Brasil. Afinal, deve haver um limite para a autodestruição.
Roberto DaMatta
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