terça-feira, 26 de abril de 2016

Punindo a vítima pelo próprio crime

O papo furado da ocorrência de um golpe contra o desastrado e atarantado desgoverno Dilma tem sido desmentido à exaustão. É o que mostra o placar folgado pelo qual foi aprovado em votação no plenário da Câmara dos Deputados o difamado relatório do ex-governista Jovair Arantes recomendando a abertura do processo do impeachment dela pelo Senado. Foram 367 votos sim contra 137 não e mais 7 abstenções e 2 ausências, 146 num total de 513: dois terços do quórum qualificado exigido mais 25.


Essa sessão histórica está sendo execrada por conta dos discursos prévios aos votos dos presentes, embora estes em nada tivessem diferido dos proferidos em disputas anteriores em voto aberto. Principalmente no último procedimento similar, em que foi deposto Fernando Collor de Mello. Outra tentativa de desqualificar a votação foi lembrar que apenas 34 votantes tinham obtido nas urnas sufrágios suficientes para se elegerem. O argumento é tão falacioso quanto o que nega legitimidade a Michel Temer sob a alegação de que ele não foi escolhido pelo eleitor. No Estado Democrático de Direito vigente no Brasil até ordem em contrário, o vice é legítimo, pois recebeu os mesmos votos da titular da chapa (mais de 54 milhões). Só votou no plenário da Câmara, da mesma forma, representante qualificado pelo sistema eleitoral vigente, o proporcional. Este pode até ser equivocado – e o tenho combatido desde 1988, quando foi ratificado e, a meu ver, até piorado. Mas é o que vige desde 1946, quando foi adotado, e continuará a valer até ser revogado por alguma reforma constitucional. Ou um coup d’État.

Ainda assim, nenhum brasileiro de posse das faculdades mentais, capaz de raciocinar com clareza e lógica e bem informado tem o direito de reclamar do resultado da sessão histórica daquele domingo. Deputado não é eleito para falar bem nem para agradar a gregos e troianos, mas para representar a sociedade. É a essência da democracia representativa, aqui vigente. O regime é imperfeito, como tudo o que é humano, mas não se conhece outro melhor. Quem votou sim expressou, de forma quase exata aritmeticamente, a posição do cidadão que o elegeu. Mesmo não tendo alcançado na eleição o coeficiente eleitoral, que não é uma meta a ser atingida por nenhum candidato, mas o número pelo qual se habilita uma legenda ou coligação para ocupar as vagas na Casa, como estabelece a lei. Afirmar que só 34 receberam os votos equivalentes a esse coeficiente não é informação útil, mas engodo, que só pode nascer de má-fé ou ignorância: é desinformação.

Na verdade, os discursos que deveriam ser criticados, embora nem por isso desconsiderados, seriam os que manifestaram o legítimo direito de dissentir da maioria, votos vencidos por larga margem. Ao denunciarem um golpe inexistente, esses representantes do povo mentiram, tentaram confundir o eleitorado e inscreveram na História política um ato que negou seus discursos. Seus votos provaram que aquela sessão não correspondeu a uma conspiração golpista, pois avalizaram a decisão da maioria. Se aquilo era um golpe disfarçado, por que cargas d’água eles compareceram para votar não? É claro que o fizeram pela permanência do desgoverno zumbi. Como não conseguiram, legitimaram a decisão da maioria.

Tal legitimidade foi, de novo, confirmada pela principal propagadora da tese que a contesta. A presidente Dilma Rousseff levou 51 (e esta não foi a melhor ideia que teve na vida) convidados para ouvirem seu discurso na assembleia da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre clima. Foi uma viagem inócua, contraditória e dispendiosa para o contribuinte, que a pagou nesta situação de crise aguda. Se foi feita para denunciar o golpe no exterior, malogrou completamente. Na ONU, felizmente, Dilma fez um discurso protocolar, em que a imagem do Brasil não foi prejudicada, como o foram os dês dos gerúndios, que, mesmo lendo, madama não pronuncia, submetendo os ouvidos dos lusófonos a “andano”, “pedalano” e outros barbarismos similares.

Mas o súbito surto de lucidez da “chefa” do governo foi interrompido quando, à noite, após ter visitado uma exposição de Degas, deu, de pé, uma entrevista coletiva e repetiu, aos berros, suas ladainhas. É golpe, jurou de pés separados e uma vez mais. Assim, descreveu o Brasil como a sede da primeira interrupção brusca de uma democracia em que o substituto ocupa o posto na sua ausência para, depois, devolver-lho sem nenhuma quebra protocolar. Se tivesse sido golpeada, Dilma não teria mais uma vez transferido ao contribuinte o ônus de pagar US$ 100 mil pela desistência de permanecer em Manhattan, antecipando a volta em um dia.

Enquanto a presidente jurava novamente nunca haver delinquido na vida, em casa o noticiário dava conta de que sua inocência presumida e apregoada é ameaçada por inquéritos policiais que põem em dúvida sua lisura em vários episódios, conforme delações premiadas de ex-aliados de ocasião. Daniele Fontelles, publicitária da Pepper, relatou àIstoÉ histórias cabeludas da contabilidade de sua campanha, protagonizadas por seu “maçaneta”, Giles Azevedo. Segundo outra revista, a Época, a santidade do nome dela deixou de ser unanimidade nacional. Sua honra está sendo enxovalhada em relatos, que não parecem da carochinha, envolvendo o ex-marido Carlos Araújo e a sempre por ela protegida Erenice Guerra.

Ao invocar esses mantras, a presidente fez questão de lembrar que três ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) que a criticaram por insistir na tese do golpe, são minoria num plenário de 11. Não errou a conta, mas essa manifestação de menosprezo por um Poder autônomo não a ajudará em sua porfia para ficar no trono, contrariando, no mínimo, 61% dos brasileiros ouvidos em pesquisa, 71% dos deputados federais que autorizaram o impeachment e 59% dos senadores. Estes declararam publicamente apoio a sua retirada no placar do Estadão, contribuição histórica da imprensa livre à cidadania soberana, por informar a cada dia ao eleitor qual seria a posição de seus representantes na Câmara. E agora dos representantes dos Estados, na disputa no Senado.

Seu ânimo belicoso, que ajudou a levá-la à beira do abismo institucional, onde está no momento, inspirou-a a incluir, na mesma desastrada entrevista, entre os interessados no tal golpe a imprensa, que noticia a morte e prenuncia o sepultamento de seu desgoverno.

Urge ressaltar que ela também inovou, naquela ocasião, convocando Mercosul e Unasul a punirem o Brasil, caso se confirme a prenunciada pule de dez de sua deposição. É, na certa, o primeiro caso na História em que um governante pede sanções contra o país cujas instituições jurou não apenas cumprir e honrar, mas também defender. Ao investir contra a Constituição de 1988, Dilma reassume enfaticamente, aqui ou fora do País, antigas convicções de desapreço pela democracia burguesa, que não quis restaurar quando pegou em armas contra a ditadura militar, ao contrário do que diz. Em vez de respeitá-la, ela só tenta usá-la em defesa do pretenso direito, que se atribui, de violar a lei, o que lhe teria sido conferido pelo voto popular. Assim, age como delinquente que exige que se puna a vítima pelo crime dela.

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