A histórica cuspidela (acho que já podemos chamá-la histórica) de Jean Wyllys contra Jair Bolsonaro parece-me muitíssimo mais legítima do que a de Carlos da Maia contra Dâmaso Salcede. Nesta última estava em causa a dignidade de uma senhora. Na primeira estava em causa a dignidade de um país inteiro. As declarações de Bolsonaro, que tiveram (e continuam a ter) larga repercussão na imprensa internacional, degradam imensamente a imagem do Brasil. Quem produz uma declaração como aquela não está nem à esquerda, nem à direita: está atrás! Lá muito, muito atrás, num tempo e numa sociedade em que a tortura era vista como um delicado entretenimento de cavalheiros. O ideal seria enviar o senhor Bolsonaro de volta a essa era remota. Não sendo possível isso, por óbvias dificuldades técnicas, então que o mandem para os territórios ainda ocupados pelo Daesh, que é o mais parecido que temos hoje com a Idade Média. Bolsonaro deverá sentir-se bem ali, naqueles ásperos desertos, entre torturadores e violadores, homens que odeiam mulheres livres e apedrejam os homossexuais até a morte.
Imagino que Bolsonaro se veja a si próprio como um legítimo nacionalista brasileiro. Porém, ao menos para os meus ainda um tanto ingênuos olhos estrangeiros, Bolsonaro representa o contrário, representa o anti-Brasil. Bolsonaro tem tanto a ver com o Brasil (que eu amo) quanto um urso polar tem a ver com uma savana. “Bolsonaro brasileiro” soa aos meus ouvidos como um oximoro desagradável. Não obstante o pesado ambiente de crispação que se instalou no Brasil ao longo dos últimos meses, os brasileiros continuam a ser vistos no exterior como um povo carinhoso, festivo, tolerante e generoso. Tenho testemunhado, nas minhas viagens, o valor de um passaporte brasileiro. Basta alguém dizer “sou brasileiro” para que os sorrisos se abram. Eu próprio finjo por vezes que sou brasileiro de forma a ser melhor tratado em países remotos.
Cuspir na face de outro é um gesto universal de desprezo. Para alguns antropólogos seria uma regurgitação simbólica, do tipo “já te comi e agora cuspo-te, porque tu és completamente intragável”; para outros representaria uma ameaça de contaminação.
Ilustres cuspidores do nosso tempo incluem nomes como Brad Pitt, Naomi Campbell ou Justin Bieber (cuspiu no rosto de um DJ; cuspiu em fãs, a partir da sacada de um hotel; cuspiu numa mulher dentro de uma academia, e por aí fora). Jogadores de futebol, conhecidos por cuspir no gramado, vez por outra projetam também os seus atléticos fluídos no rosto dos adversários ou dos árbitros (Falcão, Diego Costa, Neto). No xadrez, talvez porque os jogadores não tenham por hábito cuspir no tabuleiro, é mais difícil imaginar situações semelhantes. Até mesmo Bobby Fischer, famoso pelo temperamento explosivo, nunca usou o seu cuspe em público senão para atingir, diante das câmaras de televisão, um documento das autoridades americanas que o proibia de entrar na Iugoslávia.
Todas as cuspidelas listadas acima constituem, é claro, casos de pura má-criação. Nada a ver com as cuspidelas aristocráticas e de grandes causas de um Carlos da Maia. Jean Wyllys, pelo contrário, talvez tenha conseguido reabilitar a cuspidela enquanto gesto de honra. Pode questionar-se a elegância de tal gesto e a respectiva higiene, mas não, creio, a justeza da mesma. Seria preferível Wyllys ficar-se pela cuspidela metafórica (“Cuspo na sua alma!”), até porque se o deputado baiano sair por aí cuspindo em todos os canalhas vai terminar morrendo de desidratação.
Por outro lado, às vezes a vileza é tamanha, e tão desavergonhada, que seria de pensar até na contratação de cuspideiras profissionais. À semelhança das carpideiras, ou choradeiras, contratadas para chorar em funerais, esses profissionais da cuspidela percorreriam as cerimônias oficiais, cuspindo na cara assustada dos corruptos e dos canalhas explícitos. Talvez resultasse.
José Eduardo Agualusa
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